A �gua j� n�o flui naturalmente
KO�CHIRO MATSUURA

A �gua entrou de maneira percept�vel na arena pol�tica internacional. Com
isso, uma nova consci�ncia despertou: e se esse perp�tuo dom dos c�us n�o
for inesgot�vel? Trata-se tamb�m do fim de um s�mbolo: e se essa fonte de
vida, que ocupa o cerne de tantos rituais e pr�ticas higi�nicas, deixasse de
representar regenera��o e pureza? � preciso encarar os fatos: os recursos
h�dricos est�o se tornando escassos, e a qualidade da �gua ter� custo
crescente. Quanto � pureza, � dif�cil agora quantificar o n�mero de regi�es
onde a �gua contaminada gera morte, em vez de sa�de.
A Unesco, respons�vel pela cria��o de pioneiro programa hidrol�gico nos anos
70, h� muito antecipava essa nova situa��o da �gua, reconhecida pela
C�pula Mundial sobre Desenvolvimento Sustent�vel (Rio +10), realizada em
Johannesburgo no ano passado, como um dos desafios mais cr�ticos que o
mundo atual enfrenta.
Nos dois hemisf�rios, o acesso a �gua pot�vel limpa � essencial � seguran�a
humana e ao desenvolvimento sustent�vel e � considerado cada vez mais
como um direito. No entanto, 1,2 bilh�o de pessoas continuam sem acesso a
�gua pot�vel, e 2,4 bilh�es n�o disp�em de servi�os de purifica��o de �gua.
Apesar disso, o mundo disp�e de �gua fresca suficiente para cobrir a maior
parte das necessidades de �gua pot�vel, mas a distribui��o irregular dos
recursos h�dricos demonstra grandes disparidades sociais e geogr�ficas. O
problema est� mais ligado � disponibilidade do que � quantidade. E a qualidade
da �gua � tamb�m preocupa��o crescente.
Os recursos h�dricos, dada sua extrema sensibilidade � atividade humana e �
explora��o intensiva que emprega engenharia altamente t�cnica, s�o, de
certa forma, menos naturais a cada dia -a �gua j� n�o flui naturalmente. Isso
indica a necessidade de uma nova cultura da �gua, que combinaria cuidado,
poupan�a e compartilhamento. J� � mais do que o momento de respondermos
�s necessidades de comida, sa�de e energia de uma popula��o crescente por
meio da ado��o de uma atitude mais "s�bria".
Como no caso de qualquer outro direito, o direito de acesso � �gua tamb�m
estabelece obriga��es: a obriga��o de que as autoridades p�blicas garantam
a distribui��o, a obriga��o de que os usu�rios impe�am o desperd�cio.
A agricultura por si s� responde por dois ter�os do consumo de �gua obtida
de reservat�rios naturais. Aumentar os rendimentos, instalar sistemas de
drenagem e impedir irriga��o excessiva respons�vel por desastres ecol�gicos
s�o as nossas metas. Al�m disso, em um s�culo, as retiradas mundiais de
�gua aumentaram em 700%, e o consumo para fins industriais cresceu 30
vezes.
A implementa��o de pesquisas cient�ficas pode trazer mudan�as consider�veis
a essas e outras �reas, desde que a informa��o circule e mudan�as de
comportamento sejam adotadas. A ci�ncia e a educa��o s�o, portanto,
condi��es b�sicas para esses avan�os, que se provam mais e mais urgentes �
medida que crescem as necessidades das cidades. Estas n�o s�o exemplo de
frugalidade, j� que a estimativa � de que 40% do consumo urbano seja
causado por desperd�cio.
Al�m disso, a produ��o de dejetos aqu�ticos aumentou em 20 vezes ao longo
do s�culo. Quanto � polui��o difusa relacionada a agricultura, ind�stria e
desenvolvimento urbano, como nitratos e pesticidas, trata-se de uma amea�a
cont�nua �s reservas de �gua. A seguran�a alimentar est� em risco,
ecossistemas est�o sendo destru�dos, doen�as relacionadas � �gua causam
milh�es de mortes a cada ano, especialmente nos pa�ses em desenvolvimento.
A polui��o, portanto, precisa ser encarada como importante problema de
sa�de p�blica. Se n�o reagirmos, isso pode prejudicar o futuro desses
recursos, comprometendo a qualidade de vida, e at� a sobreviv�ncia, das
futuras gera��es.
Para eliminar as disparidades e proteger a �gua, a �gua fresca precisa ser
reconhecida, em n�vel internacional, como bem e heran�a comum. Esse
conceito, que enfatiza a import�ncia do compartilhamento, � tamb�m uma
contribui��o para a paz. Porque a �gua, cada vez mais vital, tornou-se
tamb�m uma quest�o estrat�gica. No mundo, 261 bacias fluviais s�o divididas
entre Estados diferentes, o que gera o risco de "guerras pela �gua". A
comunidade internacional precisa impedir que conflitos sobre a aloca��o da
�gua tornem-se mais ruidosos do que o di�logo, por meio de instrumentos
legais s�lidos, especialmente nas �reas onde a escassez se alia a tens�es
pol�ticas.
A �gua se tornou parte do circuito econ�mico. Dado o imenso investimento
requerido para criar infra-estrutura h�drica, n�o se pode mais considerar
gratuito o acesso � �gua. Mas o acesso de todos � �gua pot�vel n�o pode
ser garantido sem considerar a renda e as necessidades dos usu�rios, a fim
de ajustar as escalas de pre�o: a nova cultura da �gua � tamb�m �tica. A
busca de equanimidade deve reinar sobre o processo decis�rio: grandes
projetos h�dricos, especialmente represas, t�m alto custo social e humano, e
muitos desastres podem ser evitados pelo di�logo. Isso implica, uma vez mais,
em um esfor�o de educa��o, informa��o e treinamento.
A Unesco decidiu definir a �gua como uma de suas prioridades nos pr�ximos
anos. Nessa �rea, nossa compet�ncia � uma vantagem: al�m de oferecer
apoio a potenciais estudos hidrol�gicos, a organiza��o pode ampliar, no plano
internacional, o compromisso com a educa��o, vital ao processo de
desenvolvimento sustent�vel. Se demorarmos a estabelecer um senso real de
ecocidadania, que fomente a frugalidade e o esp�rito p�blico, talvez um dia a
Terra deixe de ser conhecida como o "Planeta Azul".


Ko�chiro Matsuura, 65, economista e diplomata japon�s, � o diretor-geral da
Unesco (Organiza��o das Na��es Unidas para a Educa��o, Ci�ncia e Cultura).

Artigo publicado na Folha de S. Paulo de 02/02/2003