COMIT� PAULISTA PARA A D�CADA DA CULTURA DE PAZ
2001 - 2010
Frases do texto
A Casa Mundial

Martin Luther King Jr.
H� alguns anos um famoso escritor faleceu. Entre seus escritos
foi encontrada uma lista de temas para futuros livros.
Dentre eles o mais destacado era: "Uma fam�lia muito desunida
herda uma casa na qual devem viver juntos". Este � o novo
grande problema da humanidade. Herdamos uma casa grande,
uma "casa mundial" na qual temos que viver juntos:
preto e branco, ocidental e oriental, gentio e judeu,
cat�lico e protestante, mu�ulmano e hindu - uma fam�lia com
membros separados desde sempre em id�ias, culturas e interesses
e que, impossibilitados agora de viver isoladamente,
precisam de alguma forma conviver em paz uns com os outros.


Vivemos num tempo, disse o fil�sofo Alfred North Whitehead,
"em que a civiliza��o reformula sua vis�o fundamental;
um momento de virada em que os pressupostos sobre os quais
a sociedade est� estruturada est�o sendo analisados,
questionados e profundamente modificados".


Nada mais tr�gico que viver esses
tempos revolucion�rios e deixar de adquirir
as novas atitudes e os novos pressupostos que a situa��o exige.


Uma das grandes ironias da hist�ria � que muitas pessoas
n�o permanecem alertas durante importantes
per�odos de mudan�a social. Toda sociedade tem
seus protetores do status quo e suas
fraternidades de indiferentes, not�rias por dormitar
durante as revolu��es. Mas hoje nossa sobreviv�ncia depende
da habilidade de ficar despertos, adaptar-nos a novas id�ias,
estar vigilantes e encarar o desafio da mudan�a.
A grande casa onde vivemos requer que transformemos
essa vizinhan�a global numa fraternidade global.
Juntos, devemos aprender a viver como irm�os,
caso contr�rio, pereceremos for�osamente como tolos.


A esperan�a de viver criativamente na casa mundial
que herdamos repousa em nossa habilidade de reeditar
os objetivos �ticos de nossa vida pessoal e de justi�a social.
Sem este despertar espiritual e �tico acabaremos por
nos destruir pelo mau uso de nossos pr�prios instrumentos.


Dentre os imperativos �ticos de nosso tempo,
somos desafiados a trabalhar obstinadamente no
mundo inteiro para varrer todos os vest�gios de racismo.
J� em 1906 W. E. B. Du Bois profetizava que
"o problema do s�culo XX ser� o problema da divis�o de cor".
Hoje sabemos que o racismo � o c�o infernal no encal�o de nossa civiliza��o.


O racismo n�o � um problema somente na Am�rica do Norte,
seu dom�nio n�o conhece barreiras geogr�ficas. De fato,
o racismo e seu eterno aliado - a explora��o econ�mica -
fornecem a chave para o entendimento da maioria
dos entreveros internacionais desta gera��o.


Este n�o � um fundamento seguro para a casa mundial.
O racismo pode bem ser o agente corrosivo
que far� ruir a civiliza��o ocidental. Arnold Toynbee disse
que cerca de vinte e seis civiliza��es surgiram sobre a face da terra.
Quase todas foram destru�das. A ascens�o e queda
dessas civiliza��es, segundo Toynbee, n�o foi causada
por invas�es estrangeiras, mas por uma decad�ncia interna.
Elas n�o conseguiram reagir criativamente aos desafios que enfrentaram.
Se a civiliza��o ocidental n�o responder construtivamente
ao desafio de banir o racismo, algum historiador do futuro
ter� de escrever que uma grande civiliza��o morreu por
n�o ter tido o desejo e o comprometimento de fazer da justi�a
uma realidade para todos os homens.


Um outro grave problema que deve ser resolvido
se quisermos viver criativamente em nossa casa mundial
� o da pobreza em escala global. Como um gigantesco polvo,
ela estende seus tent�culos, apertando e sufocando pa�ses
e vilarejos por todo o mundo.


Um programa genu�no por parte das na��es mais ricas
para fazer prosperar as na��es mais pobres ir�, em �ltima an�lise,
aumentar a prosperidade de todos. Uma das melhores provas
de que a realidade tem seus fundamentos na �tica
� o fato de que quando homens e governos trabalham
devotadamente pelo bem dos outros, conquistam seu pr�prio
enriquecimento ao longo do processo.


Desde tempos imemoriais os homens t�m vivido
pelo princ�pio de que "a auto-preserva��o � a primeira lei da vida",
mas isto � um falso pressuposto. Diria que a preserva��o do outro
� a primeira lei da vida. E � a primeira justamente porque
n�o podemos preservar o ser sem o cuidado de preservar outros seres.
O universo est� estruturado de tal forma que
as coisas tomam o caminho errado quando os homens
n�o s�o diligentes no cultivo da dimens�o do "cuidado com o outro".
N�o posso me realizar sem "voc�".
O ser n�o pode ser sem outros seres.
Cuidado de si sem cuidado do outro � como um afluente
que n�o tem sa�da para o mar, a �gua parada, estagnada.
Falta vida e frescor. Nada seria mais desastroso e desarm�nico
para nossos interesses do que permitir que as
na��es desenvolvidas entrassem na rua sem sa�da
do ego�smo desordenado. Estamos na situa��o afortunada
de poder fundir nosso mais profundo sentido �tico
com nossos pr�prios interesses.


Todos os homens s�o interdependentes. Cada na��o � herdeira
de um vasto tesouro de id�ias e trabalho para o qual contribu�ram
os vivos e os mortos de todas as na��es. Quer percebamos ou n�o,
cada um de n�s vive eternamente "no vermelho".
Somos devedores permanentes de homens e mulheres desconhecidos.
Quando levantamos de manh� caminhamos at� o banheiro
e pegamos uma esponja que foi colhida por um ilh�u do Pac�fico.
Pegamos o sab�o que foi inventado por um Europeu.
� mesa bebemos caf� fornecido por um habitante
da Am�rica do Sul, ou ch� plantado pelos chineses,
ou chocolate cultivado por um africano oriental.
Antes de sairmos para o trabalho j� devemos para mais de meio mundo.


Verdadeiramente, toda a vida est� inter-relacionada.
A agonia do pobre empobrece o rico; a melhoria do pobre
enriquece o rico. Somos inevitavelmente os guardi�es
de nosso irm�o porque somos o irm�o de nosso irm�o.
O que afeta diretamente a um, afeta a todos indiretamente.


Um �ltimo problema que a humanidade deve resolver
para sobreviver na casa mundial que herdamos � encontrar
uma alternativa para a guerra e a destrui��o dos homens.
Acontecimentos recentes demonstram nitidamente
que as na��es n�o est�o diminuindo, mas sim aumentando
seus arsenais de armas de destrui��o em massa.
As melhores cabe�as nas na��es mais desenvolvidas do mundo
dedicam-se � tecnologia militar. A prolifera��o de armas at�micas n�o parou
apesar do tratado de limita��o dos testes.


Nesta �poca de conquistas tecnol�gicas avan�adas,
de descobertas estonteantes, de novas oportunidades,
grande dignidade e plena liberdade para todos, n�o h� desculpas
para aquela fome insana de poder e recursos
que provocou guerras nas gera��es anteriores.
N�o h� necessidade de lutar por alimento ou terras.
A ci�ncia nos ofereceu meios adequados de sobreviv�ncia
e transporte que nos permitem desfrutar a plenitude
deste grande planeta. A quest�o agora �:
teremos a �tica e a coragem exigidas para viver juntos,
como irm�os, sem medo?

Uma das ambig�idades mais persistentes que enfrentamos
� que todos falam da paz como uma meta,
mas entre os detentores do poder
a paz n�o � da conta de ningu�m.
Muitos clamam por "Paz! Paz!", por�m recusam-se
a fazer coisas que conduzem � paz.


Antes que seja tarde demais, devemos diminuir
a dist�ncia entre nossas declara��es de paz
e nossas a��es vis, que precipitam e perpetuam a guerra.
� nosso dever levantar os olhos do p�ntano
de programas militares e investimentos em defesa
e ler os avisos nas placas da hist�ria.

Um dia veremos que a paz n�o � apenas um
objetivo distante que buscamos, mas um meio pelo qual
chegaremos a esta meta. Devemos procurar metas de paz
atrav�s de meios pac�ficos. Quanto tempo ainda precisaremos
praticar jogos de guerra mortais antes de ouvir as s�plicas
dos incont�veis mortos e mutilados das guerras passadas?


Portanto, sugiro que a filosofia e a estrat�gia da n�o-viol�ncia
sejam imediatamente estudadas e seriamente aplicadas
em todos os campos do conflito humano, sem excluir
as rela��es entre os Estados. Afinal, s�o as na��es-estado
que fazem a guerra, que produzem as armas que amea�am
a sobreviv�ncia da humanidade,
e que mostram um car�ter suicida e genocida.


N�o basta dizer "N�o devemos fazer guerra".
� preciso amar a paz e fazer sacrif�cios por ela.
Precisamos nos concentrar n�o somente em erradicar a guerra,
mas em afirmar a paz. Chegou-nos da literatura grega
uma fascinante hist�ria sobre Ulisses e as Sereias:
Era t�o doce o seu canto que os marinheiros
n�o resistiam e rumavam para sua ilha. Muitos navios
eram levados at� as pedras, os homens se esqueciam de casa,
do dever e da honra e atiravam-se ao mar para
abra�ar as criaturas que os levavam ao fundo e � sua morte.
Ulisses, decidido a n�o sucumbir �s Sereias, primeiro
amarrou-se firmemente ao mastro do navio e
pediu � tripula��o que tampasse seus ouvidos com cera.
Por fim Ulisses e sua tripula��o aprenderam
um m�todo melhor de salvamento: Trouxeram a bordo
um �timo cantor, Orpheu, cujas melodias eram mais doces
que aquelas das Sereias. Quando Orpheu cantava,
quem quereria ouvir as Sereias?


Da mesma forma devemos ver que a paz representa
uma m�sica mais doce, uma melodia c�smica muito superior
aos desentendimentos da guerra. De alguma forma devemos
transformar a din�mica mundial da corrida pelo poder e armas nucleares,
que ningu�m pode ganhar, num concurso criativo
capaz de dirigir o g�nio do homem para a realiza��o
da paz e prosperidade como realidade para todas as na��es da terra.
Em suma, devemos mudar da corrida armamentista para a corrida da paz.
Se tivermos a vontade e determina��o para montar tal ofensiva de paz,
estaremos abrindo as portas, at� ent�o lacradas,
da esperan�a e deixando entrar a luz nos espa�os escuros do pessimismo.


Uma genu�na revolu��o de valores significa, em �ltima an�lise,
que nossa lealdade deve tornar-se ecum�nica em vez de setorial.
Todas as na��es devem agora desenvolver uma
lealdade priorit�ria � humanidade como um todo para
preservar o que h� de melhor em suas sociedades individuais.


Este chamamento por uma parceria mundial que
estende o zelo de vizinhos para al�m de nossa tribo, ra�a,
classe ou na��o � na realidade um chamamento
pelo amor incondicional e todo-abrangente por todos os homens.


Esperemos que este esp�rito torne-se a ordem do dia.
N�o podemos mais nos dar ao luxo de adorar o deus do �dio
ou ajoelhar no altar da retalia��o. Os oceanos da hist�ria encapelam-se
nas mar�s do �dio. Ali jazem os destro�os de na��es e indiv�duos
que perseguiram este caminho. Como disse Arnold Toynbee em um discurso:
"O amor � a for�a �ltima que faz a escolha salvadora da vida
e do bem contra a escolha demon�aca da morte e do mal.
Portanto, a primeira esperan�a em nosso invent�rio
deve ser a esperan�a de que o amor ter� a �ltima palavra".


Agora nos defrontamos com o fato de que o ontem se tornou hoje.
Somos confrontados com a urg�ncia feroz do agora.
Neste desenrolar de vida e hist�ria h� algo
que se denomina chegar tarde demais. A procrastina��o
� o ladr�o do tempo. A vida freq�entemente nos deixa nus
e miser�veis diante de uma oportunidade perdida.
A mar� dos neg�cios humanos n�o fica permanentemente na enchente.
Ainda que pe�amos desesperados por uma pausa
na passagem do tempo, ele se mostra indiferente e segue correndo.
Por sobre os ossos calcinados e destro�os amontoados
de in�meras civiliza��es l�-se as palavras "tarde demais".
No livro invis�vel da vida, que fielmente relata
nossos zelos e neglig�ncias, "a m�o escreve, e tendo escrito,
move-se adiante..." Ainda temos uma escolha:
coexist�ncia n�o-violenta ou co-aniquila��o violenta.
Esta pode bem ser a �ltima chance de escolhermos entre caos e comunidade.

Em: Where do we go from here: Chaos or Community, Martin Luther King Jr., 1967


Traduzido por T�nia Van Acker
Associa��o Palas Athena
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