H� alguns anos um famoso escritor faleceu. Entre seus escritos
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foi encontrada uma lista de temas para futuros livros.
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Dentre eles o mais destacado era: "Uma fam�lia muito desunida
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herda uma casa na qual devem viver juntos". Este � o novo
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grande problema da humanidade. Herdamos uma casa grande,
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uma "casa mundial" na qual temos que viver juntos:
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preto e branco, ocidental e oriental, gentio e judeu,
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cat�lico e protestante, mu�ulmano e hindu - uma fam�lia com
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membros separados desde sempre em id�ias, culturas e interesses
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e que, impossibilitados agora de viver isoladamente,
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precisam de alguma forma conviver em paz uns com os outros.
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Vivemos num tempo, disse o fil�sofo Alfred North Whitehead,
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"em que a civiliza��o reformula sua vis�o fundamental;
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um momento de virada em que os pressupostos sobre os quais
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a sociedade est� estruturada est�o sendo analisados,
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questionados e profundamente modificados".
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Nada mais tr�gico que viver esses
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tempos revolucion�rios e deixar de adquirir
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as novas atitudes e os novos pressupostos que a situa��o exige.
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Uma das grandes ironias da hist�ria � que muitas pessoas
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n�o permanecem alertas durante importantes
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per�odos de mudan�a social. Toda sociedade tem
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seus protetores do status quo e suas
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fraternidades de indiferentes, not�rias por dormitar
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durante as revolu��es. Mas hoje nossa sobreviv�ncia depende
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da habilidade de ficar despertos, adaptar-nos a novas id�ias,
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estar vigilantes e encarar o desafio da mudan�a.
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A grande casa onde vivemos requer que transformemos
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essa vizinhan�a global numa fraternidade global.
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Juntos, devemos aprender a viver como irm�os,
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caso contr�rio, pereceremos for�osamente como tolos.
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A esperan�a de viver criativamente na casa mundial
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que herdamos repousa em nossa habilidade de reeditar
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os objetivos �ticos de nossa vida pessoal e de justi�a social.
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Sem este despertar espiritual e �tico acabaremos por
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nos destruir pelo mau uso de nossos pr�prios instrumentos.
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Dentre os imperativos �ticos de nosso tempo,
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somos desafiados a trabalhar obstinadamente no
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mundo inteiro para varrer todos os vest�gios de racismo.
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J� em 1906 W. E. B. Du Bois profetizava que
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"o problema do s�culo XX ser� o problema da divis�o de cor".
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Hoje sabemos que o racismo � o c�o infernal no encal�o de nossa civiliza��o.
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O racismo n�o � um problema somente na Am�rica do Norte,
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seu dom�nio n�o conhece barreiras geogr�ficas. De fato,
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o racismo e seu eterno aliado - a explora��o econ�mica -
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fornecem a chave para o entendimento da maioria
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dos entreveros internacionais desta gera��o.
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Este n�o � um fundamento seguro para a casa mundial.
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O racismo pode bem ser o agente corrosivo
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que far� ruir a civiliza��o ocidental. Arnold Toynbee disse
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que cerca de vinte e seis civiliza��es surgiram sobre a face da terra.
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Quase todas foram destru�das. A ascens�o e queda
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dessas civiliza��es, segundo Toynbee, n�o foi causada
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por invas�es estrangeiras, mas por uma decad�ncia interna.
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Elas n�o conseguiram reagir criativamente aos desafios que enfrentaram.
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Se a civiliza��o ocidental n�o responder construtivamente
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ao desafio de banir o racismo, algum historiador do futuro
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ter� de escrever que uma grande civiliza��o morreu por
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n�o ter tido o desejo e o comprometimento de fazer da justi�a
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uma realidade para todos os homens.
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Um outro grave problema que deve ser resolvido
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se quisermos viver criativamente em nossa casa mundial
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� o da pobreza em escala global. Como um gigantesco polvo,
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ela estende seus tent�culos, apertando e sufocando pa�ses
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e vilarejos por todo o mundo.
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Um programa genu�no por parte das na��es mais ricas
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para fazer prosperar as na��es mais pobres ir�, em �ltima an�lise,
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aumentar a prosperidade de todos. Uma das melhores provas
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de que a realidade tem seus fundamentos na �tica
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� o fato de que quando homens e governos trabalham
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devotadamente pelo bem dos outros, conquistam seu pr�prio
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enriquecimento ao longo do processo.
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Desde tempos imemoriais os homens t�m vivido
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pelo princ�pio de que "a auto-preserva��o � a primeira lei da vida",
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mas isto � um falso pressuposto. Diria que a preserva��o do outro
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� a primeira lei da vida. E � a primeira justamente porque
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n�o podemos preservar o ser sem o cuidado de preservar outros seres.
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O universo est� estruturado de tal forma que
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as coisas tomam o caminho errado quando os homens
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n�o s�o diligentes no cultivo da dimens�o do "cuidado com o outro".
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N�o posso me realizar sem "voc�".
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O ser n�o pode ser sem outros seres.
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Cuidado de si sem cuidado do outro � como um afluente
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que n�o tem sa�da para o mar, a �gua parada, estagnada.
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Falta vida e frescor. Nada seria mais desastroso e desarm�nico
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para nossos interesses do que permitir que as
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na��es desenvolvidas entrassem na rua sem sa�da
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do ego�smo desordenado. Estamos na situa��o afortunada
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de poder fundir nosso mais profundo sentido �tico
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com nossos pr�prios interesses.
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Todos os homens s�o interdependentes. Cada na��o � herdeira
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de um vasto tesouro de id�ias e trabalho para o qual contribu�ram
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os vivos e os mortos de todas as na��es. Quer percebamos ou n�o,
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cada um de n�s vive eternamente "no vermelho".
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Somos devedores permanentes de homens e mulheres desconhecidos.
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Quando levantamos de manh� caminhamos at� o banheiro
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e pegamos uma esponja que foi colhida por um ilh�u do Pac�fico.
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Pegamos o sab�o que foi inventado por um Europeu.
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� mesa bebemos caf� fornecido por um habitante
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da Am�rica do Sul, ou ch� plantado pelos chineses,
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ou chocolate cultivado por um africano oriental.
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Antes de sairmos para o trabalho j� devemos para mais de meio mundo.
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Verdadeiramente, toda a vida est� inter-relacionada.
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A agonia do pobre empobrece o rico; a melhoria do pobre
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enriquece o rico. Somos inevitavelmente os guardi�es
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de nosso irm�o porque somos o irm�o de nosso irm�o.
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O que afeta diretamente a um, afeta a todos indiretamente.
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Um �ltimo problema que a humanidade deve resolver
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para sobreviver na casa mundial que herdamos � encontrar
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uma alternativa para a guerra e a destrui��o dos homens.
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Acontecimentos recentes demonstram nitidamente
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que as na��es n�o est�o diminuindo, mas sim aumentando
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seus arsenais de armas de destrui��o em massa.
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As melhores cabe�as nas na��es mais desenvolvidas do mundo
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dedicam-se � tecnologia militar. A prolifera��o de armas at�micas n�o parou
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apesar do tratado de limita��o dos testes.
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Nesta �poca de conquistas tecnol�gicas avan�adas,
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de descobertas estonteantes, de novas oportunidades,
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grande dignidade e plena liberdade para todos, n�o h� desculpas
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para aquela fome insana de poder e recursos
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que provocou guerras nas gera��es anteriores.
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N�o h� necessidade de lutar por alimento ou terras.
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A ci�ncia nos ofereceu meios adequados de sobreviv�ncia
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e transporte que nos permitem desfrutar a plenitude
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deste grande planeta. A quest�o agora �:
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teremos a �tica e a coragem exigidas para viver juntos,
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como irm�os, sem medo?
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Uma das ambig�idades mais persistentes que enfrentamos
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� que todos falam da paz como uma meta,
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mas entre os detentores do poder
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a paz n�o � da conta de ningu�m.
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Muitos clamam por "Paz! Paz!", por�m recusam-se
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a fazer coisas que conduzem � paz.
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Antes que seja tarde demais, devemos diminuir
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a dist�ncia entre nossas declara��es de paz
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e nossas a��es vis, que precipitam e perpetuam a guerra.
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� nosso dever levantar os olhos do p�ntano
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de programas militares e investimentos em defesa
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e ler os avisos nas placas da hist�ria.
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Um dia veremos que a paz n�o � apenas um
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objetivo distante que buscamos, mas um meio pelo qual
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chegaremos a esta meta. Devemos procurar metas de paz
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atrav�s de meios pac�ficos. Quanto tempo ainda precisaremos
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praticar jogos de guerra mortais antes de ouvir as s�plicas
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dos incont�veis mortos e mutilados das guerras passadas?
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Portanto, sugiro que a filosofia e a estrat�gia da n�o-viol�ncia
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sejam imediatamente estudadas e seriamente aplicadas
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em todos os campos do conflito humano, sem excluir
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as rela��es entre os Estados. Afinal, s�o as na��es-estado
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que fazem a guerra, que produzem as armas que amea�am
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a sobreviv�ncia da humanidade,
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e que mostram um car�ter suicida e genocida.
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N�o basta dizer "N�o devemos fazer guerra".
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� preciso amar a paz e fazer sacrif�cios por ela.
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Precisamos nos concentrar n�o somente em erradicar a guerra,
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mas em afirmar a paz. Chegou-nos da literatura grega
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uma fascinante hist�ria sobre Ulisses e as Sereias:
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Era t�o doce o seu canto que os marinheiros
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n�o resistiam e rumavam para sua ilha. Muitos navios
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eram levados at� as pedras, os homens se esqueciam de casa,
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do dever e da honra e atiravam-se ao mar para
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abra�ar as criaturas que os levavam ao fundo e � sua morte.
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Ulisses, decidido a n�o sucumbir �s Sereias, primeiro
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amarrou-se firmemente ao mastro do navio e
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pediu � tripula��o que tampasse seus ouvidos com cera.
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Por fim Ulisses e sua tripula��o aprenderam
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um m�todo melhor de salvamento: Trouxeram a bordo
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um �timo cantor, Orpheu, cujas melodias eram mais doces
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que aquelas das Sereias. Quando Orpheu cantava,
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quem quereria ouvir as Sereias?
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Da mesma forma devemos ver que a paz representa
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uma m�sica mais doce, uma melodia c�smica muito superior
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aos desentendimentos da guerra. De alguma forma devemos
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transformar a din�mica mundial da corrida pelo poder e armas nucleares,
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que ningu�m pode ganhar, num concurso criativo
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capaz de dirigir o g�nio do homem para a realiza��o
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da paz e prosperidade como realidade para todas as na��es da terra.
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Em suma, devemos mudar da corrida armamentista para a corrida da paz.
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Se tivermos a vontade e determina��o para montar tal ofensiva de paz,
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estaremos abrindo as portas, at� ent�o lacradas,
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da esperan�a e deixando entrar a luz nos espa�os escuros do pessimismo.
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Uma genu�na revolu��o de valores significa, em �ltima an�lise,
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que nossa lealdade deve tornar-se ecum�nica em vez de setorial.
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Todas as na��es devem agora desenvolver uma
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lealdade priorit�ria � humanidade como um todo para
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preservar o que h� de melhor em suas sociedades individuais.
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Este chamamento por uma parceria mundial que
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estende o zelo de vizinhos para al�m de nossa tribo, ra�a,
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classe ou na��o � na realidade um chamamento
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pelo amor incondicional e todo-abrangente por todos os homens.
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Esperemos que este esp�rito torne-se a ordem do dia.
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N�o podemos mais nos dar ao luxo de adorar o deus do �dio
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ou ajoelhar no altar da retalia��o. Os oceanos da hist�ria encapelam-se
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nas mar�s do �dio. Ali jazem os destro�os de na��es e indiv�duos
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que perseguiram este caminho. Como disse Arnold Toynbee em um discurso:
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"O amor � a for�a �ltima que faz a escolha salvadora da vida
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e do bem contra a escolha demon�aca da morte e do mal.
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Portanto, a primeira esperan�a em nosso invent�rio
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deve ser a esperan�a de que o amor ter� a �ltima palavra".
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Agora nos defrontamos com o fato de que o ontem se tornou hoje.
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Somos confrontados com a urg�ncia feroz do agora.
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Neste desenrolar de vida e hist�ria h� algo
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que se denomina chegar tarde demais. A procrastina��o
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� o ladr�o do tempo. A vida freq�entemente nos deixa nus
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e miser�veis diante de uma oportunidade perdida.
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A mar� dos neg�cios humanos n�o fica permanentemente na enchente.
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Ainda que pe�amos desesperados por uma pausa
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na passagem do tempo, ele se mostra indiferente e segue correndo.
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Por sobre os ossos calcinados e destro�os amontoados
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de in�meras civiliza��es l�-se as palavras "tarde demais".
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No livro invis�vel da vida, que fielmente relata
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nossos zelos e neglig�ncias, "a m�o escreve, e tendo escrito,
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move-se adiante..." Ainda temos uma escolha:
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coexist�ncia n�o-violenta ou co-aniquila��o violenta.
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Esta pode bem ser a �ltima chance de escolhermos entre caos e comunidade.
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Em: Where do we go from here: Chaos or Community, Martin Luther King Jr., 1967
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Traduzido por T�nia Van Acker
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Associa��o Palas Athena
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