Por: Marcia Nascente e Sandra Godoy
Que sonhos somos capazes de realizar juntos?
Esta foi à questão que o líder dos direitos civis, o reverendo norte-americano Martin Luther King (1929-1968), deixou para o mundo, e que também permeou a “13ª. Semana Martin Luther King“, realizada pela Associação Palas Athena, em parceria com o SESC e com a cooperação da UNESCO e do Consulado Geral dos Estados Unidos da América, no dia 5 de abril, no teatro do Sesc Vila Mariana, em São Paulo.
Apresentado pelo ator João Signorelli, o evento teve na abertura a performance do coreógrafo, bailarino e arte-educador Rubens Oliveira Martins, denominada “Encontro com King”, criada especialmente para a ocasião, e bastante aplaudida pelos presentes. Em seguida, Mariângela Abbatepaulo, gerente do Sesc Vila Mariana, falou sobre a persistência do trabalho desenvolvido pela Palas Athena e sua co-fundadora Lia Diskin nas ações para não violência, em tempos de união de forças para o bem-estar comum. Ela comentou ainda sobre os desafios de mudança, que vão ao encontro da fraternidade da vizinhança global, na luta contra a intolerância, racismo e comportamento de segregação, conceitos tão distantes da democracia e da justiça.
O psicoterapeuta e psicólogo Camilo Ghorayeb apresentou a seguir a mesa temática “A Psicologia das Ideias de Martin Luther King”, na qual discorreu sobre as condições da consciência humana, seus problemas mais centrais, que o líder parecia conhecer muito bem, e sua relação com nossos atos inconscientes, repetidos e automáticos, vistos como mais instintivos e reativos.
Camilo explicou que a consciência individual “morde o próprio rabo”, sempre correndo grandes riscos de viciar-se em si-mesma, pois é só isso que consegue ver, passando de uma possibilidade de perceber algo novo, para uma visão repetitiva do mundo, automática, como apontado pela psicologia profunda de Freud e Jung. Esta parecia ser a consciência contra qual Martin Luther King lutava, usando a dor coletiva contra a injustiça social para criar um movimento em direção a uma nova consciência mais ampla, maleável, nova, menos automática e que percebesse o próprio erro para poder muda-lo.
“A consciência tão estimulada por MLK, e que só poderia ter existido a partir de uma resistência não-violenta que revela, em seu âmago, um profundo pedido de reavaliação sobre uma organização social, coletiva, que já não cabe mais, tornou-se como é por inércia, repetindo-se, alimentando-se de si mesma. As novas condições de igualdade de direito humanos, respeitando às diferenças, com fraternidade e compaixão, portanto, só poderiam surgir se esta mesma se percebesse velha, no pior sentido da palavra. E MLK assumiu a tarefa de expô-la desta forma, fazendo um trabalho terapêutico com toda a nação e deixou um legado para o mundo, declarou.
Ele ainda comparou a trajetória de Martin Luther King com a de Mahatma Gandhi, cujo despertar, em sua opinião, ocorreu de forma similar, “no apelo simbólico que envolve o serviço do transporte público coletivo, talvez pedindo uma movimentação social para algum outro lugar ou, talvez, ao menos, a necessidade de mais flexibilidade e liberdade imaginativa, de poder partir e chegar a mais lugares, ter mais destinos possíveis, menos paralisação mental, numa ética mais atual e condizente com a nova consciência,” explicou.
Camilo apontou para este processo de mudança tendo, como primeiro passo, a desconstrução pra depois reconstrução. A ferida da falta de justiça precisava ser tocada, dramatizada, pois era, exatamente, a ferida da falta de consciência, mas MLK tinha que ter muito cuidado, e sabia disso, pois poderia gerar uma reação violenta e, então, o resultado seria o que Gandhi, em sua própria luta, havia antecipado “olho por olho, dente por dente e o mundo acabará cego”.
Só a compaixão, que é mais que empatia, traria a força da terapia coletiva, no poder da fraternidade e traduzida por MLK pela palavra dream, imagem comum da retórica, no sonho americano. “ Foi a marca indelével que ele deixou e registrou no seu discurso Eu tenho um sonho: ‘O sonho de todas as raças poderem viver juntas como irmãos, em condições de igualdade’. E não apenas os cidadãos americanos mas, sobretudo, a humanidade”.
Depois da apresentação de Camilo Ghorayeb, foi a vez de a professora-doutora Lígia Fonseca Ferreira, docente da UNIFESP e especialista em comunicação intercultural apresentar a mesa temática “Dois Sonhos de Liberdade e Igualdade: aproximações entre Luiz Gama e Martin Luther King”.
Pesquisadora e escritora de biografia de Luiz Gama – um brasileiro negro abolicionista que fez muito pelo mesmo ideal do lider americano, mesmo tendo nascido quase 100 anos antes – Lígia contou que ele teve uma trajetória improvável como um ex-escravo, numa época em que ser negro era um estigma incapacitante de se tornar agente do seu destino.
Ela explicou que Luiz Gama, assim como Luther King, teve o sonho de se tornar o farol da democracia. “Foi reconhecido como advogado efetivo, jurista, jornalista, líder, maçom e abolicionista, e também advogava de graça para causas abolicionistas”.
De acordo com Lígia, tanto a ideia do abolicionismo como da república como valores universais, aproximaram ainda mais Martin Luther King e Luiz Gama, mesmo com a diferença de quase um século que os separava. “Assim como o reverendo, o abolicionista também mantinha a resiliência, a capacidade de sofrer revezes e a superação para retomar a auto-estima”.
A professora ponderou: “Qual a condição de ser negro no mundo, atuando de modo não violento em sistemas de violência, com afinidades que precisam ser aprendidas na convivência?”. Nas aproximações, ela reiterou que ambos trabalharam pela unidade e falaram de amor e compaixão, que é o cimento de ligação entre os homens e entre os homens e divinos.
Depois de questões endereçadas pela plateia aos palestrantes, a cantora moçambicana Lenna Bahule apresentou pocket show de seu disco “Nômade” e fez o público cantar juntos e se emocionar, ao final foi bastante aplaudida, assim como os dois intelectuais.
No dia 10 de abril, domingo, uma caminhada silenciosa com reflexão sobre frases do líder pacifista saiu do Marco Zero, na Praça da Sé, no centro de São Paulo, encerrou a “13ª Semana Martin Luther King”.
Ela acontece todos os anos no mês de abril desde 2004, e tem o objetivo de disseminar o legado da experiência do líder pacifista, revelando sua continuidade e atualidade. No dia 4 de abril de 2016 se completaram 48 anos de sua morte. Apesar de terem se passado quase 50 anos, seu pensamento continua atual, como pode-se ver na sua frase: “Todos estamos atados numa teia inescapável de mutualidade, entrelaçados por um único tecido do destino. O que quer que atinja a um diretamente, atinge a todos indiretamente” .