A Atualidade do
Pensamento Gandhiano
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Palestra proferida por Ravindra Varma, presidente da Gandhi Peace Foudantion, no audit�rio
do Museu de Arte Moderna de S�o Paulo, em 2 de outubro de 2001. O evento foi organizado
pela Associa��o Palas Athena e marcou o in�cio das comemora��es da 20� Semana Gandhi.

Estou encantado por estar com voc�s, neste momento em que a Associa��o Palas Athena
celebra a 20� Semana Gandhi em S�o Paulo. Tudo o que ouvi e vi do trabalho dessa
Associa��o me encheu de admira��o pelos seus membros, e por sua vis�o ampla e altru�smo.
Estou muito comovido com a presen�a de personalidades t�o distintas da cidade de S�o
Paulo. Vejo que seu comparecimento representa um grande tributo � mem�ria do Mahatma
Gandhi - um ser humano �nico, cuja vida e pensamento cont�m a esperan�a e a luz de que
hoje a humanidade necessita.
A preocupa��o b�sica de Gandhi era o ser humano. N�o o de um determinado pa�s ou
religi�o, mas o ser humano como membro de uma esp�cie �nica que evoluiu sobre a terra - o
chamado potencial humano -, e o poder que ele tem de realizar o seu destino na escala
evolutiva.
Gandhi era um homem de grande versatilidade, um g�nio e pioneiro. Hoje, falarei apenas de
um aspecto de sua personalidade - a modernidade de seu pensamento. Enquanto viveu, os
cr�ticos n�o lhe deram sossego. Alguns o descreviam como um "espiritualista", que queria
privar a humanidade dos benef�cios que a ci�ncia e a tecnologia puseram � nossa disposi��o;
uma pessoa que queria levar a humanidade de volta � idade das trevas. Por�m, mesmo um
exame superficial de seus discursos e escritos revelar� que essas caricaturas de Gandhi
como inimigo da modernidade n�o passam de fantasias.
Ele descrevia a si mesmo como um buscador da verdade. Embora mostrasse grande
defer�ncia e respeito pelos que o precederam, acreditava ter a obriga��o de procurar,
explorar, experimentar, verificar e viver a verdade da forma como a via. Acreditava que a
busca da verdade - e a vida � sua luz - eram o �nico sentido de viver. Afirmava que n�o se
podia pesquis�-la e verific�-la se n�o se adotasse uma disposi��o cient�fica, usando os
m�todos da experimenta��o. Portanto, recusava-se a acreditar em qualquer texto ou
profeta baseados apenas na f�. Exigia que tudo, na esfera do intelecto e da experi�ncia,
devia passar pelo teste da raz�o.
Com efeito, seu grau de compromisso com o m�todo cient�fico fica evidente em suas
palavras: "� errado me chamar de asceta. Os ideais que regulam minha vida s�o pass�veis de
aceita��o pela humanidade em geral. Cheguei a eles pela evolu��o gradual. Cada passo foi
pensado, bem refletido e adotado com grande delibera��o".
Portanto, � falso dizer que Gandhi era contra a ci�ncia e a tecnologia. Esta surge do
conhecimento que o homem adquire pelo questionamento cient�fico, mas em rela��o a certos
objetivos. S� depois da escolha deles � que vem o modo eficaz de atingi-los, por meio do
conhecimento cient�fico dispon�vel.
A tecnologia depende, portanto, de escolhas. Escolhemos entre v�rias alternativas, e a
sele��o � feita com base em nossos valores e prioridades. Estes podem ser declarados ou
ocultados com ast�cia, mas nem por isso deixam de determinar nossas op��es. � preciso,
pois, examinar a tecnologia e as inova��es a partir dos motivos ou valores que deram in�cio �
sua consolida��o.
� um erro presumir que esses valores t�m algo a ver com considera��es "do outro mundo",
ou quest�es �ticas de hierarquia religiosa. Eles s�o, de fato, imperativos sociais, tanto
quanto imperativos morais. Baseiam-se nos paradigmas inalter�veis da exist�ncia humana,
impostos pela interdepend�ncia e seus corol�rios e, em conseq��ncia, pela necessidade de
proteger e promover os valores indispens�veis � coes�o, coexist�ncia e prosperidade geral
da sociedade. Tais valores ajudam a libertar nossa mente de propens�es anti-sociais como a
gan�ncia, o desejo de domina��o e assim por diante.
O alerta de Gandhi contra a moderna tecnologia n�o se baseava na oposi��o a todo tipo de
t�cnica, ou ao uso do conhecimento cient�fico para satisfazer necessidades concretas, mas
sim nas motiva��es que ele percebia por tr�s delas, e nos valores que as refletiam e
pareciam querer santificar.
Para ele, estava claro que a moderna tecnologia tinha sido planejada para servir ao lucro, ao
poder e � busca irrespons�vel do prazer. A motiva��o a ela subjacente nem sempre era o
desejo de beneficiar a todos, mas o de buscar lucros ou poder ilimitados para uns poucos.
Gandhi n�o tinha qualquer obje��o a inova��es tecnol�gicas que servissem aos interesses de
todos, que n�o promovessem a concentra��o dos meios de produ��o e controle nas m�os de
poucos.
Opunha-se �s t�cnicas que levassem � desumaniza��o, ao desequil�brio entre as pessoas, e
entre estas e o mundo natural.
A relev�ncia e significado de Gandhi, no tocante aos problemas que surgiram com a
modernidade, ficar�o evidentes se olharmos para o que subjaz aos aspectos apenas
contextuais das batalhas que ele travou. Sua luta na �frica do Sul foi contra a discrimina��o
racial e pela dignidade e igualdade dos direitos humanos. As campanhas que ele liderou na
�ndia se opuseram � explora��o de camponeses e trabalhadores, propuseram a
independ�ncia do pa�s e a cria��o de uma nova ordem social, econ�mica e pol�tica, baseadas
na liberdade e na igualdade.
Deixamo-nos absorver com facilidade pelos elementos novos, �nicos, simb�licos e
espetaculares das lutas e movimentos que Gandhi liderou. Mas o que ele pr�prio salientou,
repetidas vezes, foi o verdadeiro significado dessas lutas. Percebia todos os movimentos que
encabe�ou como meios de apresentar um conjunto de valores, sobre os quais deveriam ser
reconstru�das atitudes individuais, rela��es sociais e institui��es. Via-os como meios
alternativos de luta por uma nova sociedade. Grandes pensadores daquela �poca, como Leon
Tolstoi e Romain Rolland, logo perceberam que as batalhas travadas por Gandhi na �frica do
Sul - e depois na �ndia -, eram de imenso significado para toda a humanidade.
Mas o que dava a esse homem fr�gil e modesto a seguran�a para desafiar um poderoso
imp�rio, dizer que sua voz falaria do seu t�mulo, e que a humanidade n�o poderia ignorar
suas palavras?
Podemos dizer que era seu compromisso e devo��o � verdade, e sua f� no supremo poder
nela latente. Foi isso que permitiu que suas palavras prevalecessem. Ele acreditava que o
ser humano tinha a capacidade �nica de procurar e identificar a verdade, e usar de modo
estrat�gico o poder ou a for�a nela contidos. Para Gandhi, a verdade era a lei que governa o
Universo, e seu poder se refletia na inexor�vel rela��o entre causa e efeito.
A lei era inalter�vel, por�m compreens�vel. Tudo que estivesse de acordo com ela perduraria,
e o que com ela conflitasse acabaria se mostrando insustent�vel e prejudicial. Portanto, o
ser humano teria de fundamentar sua a��o no mundo com base na lei. A capacidade de
identific�-la, obedecer-lhe e desenvolver-se a partir dela daria sentido � vida humana.
Vejamos agora o que Gandhi chamava de objetivos e ambi��es de sua vida. Vejamos tamb�m
se estavam limitados apenas ao contexto e �s exig�ncias imediatas daquilo que ele
enfrentava.
Seu principal objetivo era buscar e realizar a verdade: "Meu prop�sito na vida � demonstrar
que a maior for�a f�sica se curva diante da for�a moral, quando esta � usada na defesa da
verdade". Seu empenho era assegurar "a liberdade do homem em toda a sua majestade". Sua
ambi��o era enxugar todas as l�grimas de todos os olhos.
J� fizemos algumas observa��es sobre o primeiro desses objetivos, mas talvez devamos
repetir que Gandhi n�o via a verdade (e o amor) como virtudes enclausuradas: "Para algu�m
cuja vida � dedicada ao darma (o princ�pio de coes�o que mant�m a identidade das
entidades), pol�tica e economia s�o aspectos dele, e n�o se pode deixar nenhum de fora".
Gandhi se preocupava, portanto, com todas as facetas da vida humana. Acreditava que o
ser humano n�o podia buscar ou encontrar realiza��o sem liberdade. Declarava que o
verdadeiro objetivo de toda a sua luta era assegurar "a liberdade do ser humano em toda a
sua majestade". Ele sabia que determinado grupo ou pa�s podia alegar ser livre, e no entanto
indiv�duos ou grupos vivendo naquele pa�s podiam n�o s�-lo e estarem sujeitos a v�rios graus
de explora��o. Portanto, n�o hesitava em dizer que o teste da liberdade, ou do progresso de
uma sociedade, era a maneira pela qual ela se refletia na vida dos indiv�duos.
A liberdade � indispens�vel para a realiza��o ou a auto-realiza��o. Determina a oportunidade
de busc�-las. Significa o direito de escolha, bem como a responsabilidade de suportar as
conseq��ncias de nossas op��es. O direito de escolha implica a responsabilidade de proteger
a liberdade, defendendo-a, preservando-a, resistindo ou n�o cooperando com tudo que pode
corro�-la. Uma ordem ou institui��o social sadia deveria, portanto, ser julgada pelo grau em
que preserva e preza a capacidade individual de proteger sua individualidade. � �bvio que na
esfera pol�tica uma sociedade desse tipo teria de ser democr�tica. Mas Gandhi tamb�m
salientava que s� uma sociedade n�o-violenta poderia ser democr�tica.
Nesta altura, � necess�rio falar de alguns paradoxos que o ser humano enfrenta em sua
busca da liberdade e de uma ordem social que a glorifique. Tais paradoxos s�o suscitados
pelos seguintes fatores:
1.A aspira��o humana por liberdade ilimitada, e a necessidade de conciliar a liberdade com
os paradigmas de interdepend�ncia que governam suas rela��es com outros seres humanos
e a natureza;
2.A necessidade de nos reunirmos e cooperar para aumentar a efic�cia de todas as �reas
do trabalho humano;

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