Entre o juiz e o pai
Artigo do Juiz de Direito Dr. Leoberto Brancher
O que eu sinto esta noite � que estou vivo. Vivo: n�o dormir por mais que o cansa�o queira
que eu ceda. Um presente tr�gico que ganhei do pai daquele menino morto aos 16 anos com
quatro tiros nas costas. Como se a �ltima audi�ncia da tarde n�o terminasse nunca,
continuo a ouvir a dor lancinante deslizando como sangue morno e aveludado pelas palavras
nem mais raivosas, nem ainda resignadas, deste pedreiro de sete filhos, a quem a morte
arrancou o oitavo. Justi�a. Quero Justi�a. Quero que ou�am a minha dor. Que o meu filho
n�o morreu como um cachorro de rua, que ele n�o era um bicho, que ele era um ser humano.
Que tinha pai, m�e, irm�os, fam�lia, amigos. N�o quero que o rapaz que matou ele saia da
cadeia para fazer isso de novo. Sei a dor de um pai, e n�o quero para mais ningu�m. Quero
Justi�a. Nem o juiz ainda � capaz de dizer como a justi�a lhe h� de atender. Quero o que
est� na lei, responde.

Corte para o al�vio no olhar quase suspirado do advogado de defesa. Sim, juiz, o que est� na
lei, nada mais, nem um mil�metro mais, � o sopro telep�tico da id�ia que paira
instantaneamente no ar. N�o quero que ele saia, que ele fa�a isso de novo, insiste o pai. O
juiz lhe explica o que a lei reserva aos adolescentes que cometem homic�dios, o processo de
execu��o, as audi�ncias de reavalia��o semestral para questionar... o que mesmo? O que �
isso mesmo que se questiona diariamente aos adolescentes internados por crimes graves
como este, e que n�o est� mesmo escrito na lei? Responsabilidade. � o que dever�amos
buscar por aqui. Compreender as conseq��ncias do seu ato. Sofrer solid�ria e
empaticamente diante das feridas causadas �s v�timas. Sofrer rigorosamente, n�o a dor
particular do castigo, mas a dor altru�sta da compaix�o. N�o fosse isso, e seria muito f�cil
ficar 3 anos preso, dar por pagas as contas e ir embora, e viva essa lei in�til e irrespons�vel.
Mas n�o � isso, embora o pretexto sirva para defensores e atacantes. Desresponsabilizar,
por certo, � a ambrosia que o processo penal prodigiosamente serve aos acusados e seus
deuses de defesa. Desresponsabiliza��o � tamb�m o fundamento real e consistente de quem
repudia lei t�o branda. Tr�s anos: nada. Melhor seria vingar-se de m�o pr�pria, j� que a lei
n�o d� nada. Ao menos vingue-se da lei, derrube-se-a. Mas a lei n�o � isso que est� posto.
N�o � s� isso.

Sim, � verdade que isso � o que se est� fazendo, em nome da lei, em nome da defesa
incondicional e da subtra��o da responsabilidade a qualquer custo: encher pres�dios e
esvaziar a justi�a. Mas isso enquanto as luzes das consci�ncias n�o se acendam, e somente
enquanto prossigamos como fantasmas son�mbulos, mortos vivos do cemit�rio judici�rio,
coveiros da responsabilidade e da justi�a. Por isso � t�o importante saber que me sinto vivo
esta noite. Vivo e atormentado como a c�mara ardente em que reluz a alma dolorosa desse
pai. Meu cora��o de juiz, emudecido, cala para ouvir esse fio de luz que escorre das
lembran�as que lhe restam, a foto 3x4 do menino estendida sobre a mesa de audi�ncias
como se resumisse o filho agonizante ainda. 11 meses e 12 dias, doutor. Nada para o
cora��o de um pai.

Acordado, ainda que son�mbulo e certamente ainda inconsciente, agrade�o pelo que este
pai me ensina. Encontro, sinceridade, reconhecimento, verdade, luto, contri��o,
responsabilidade. Se por a� n�o escorrerem nossas �guas, nada sen�o m�goas teremos com
que saciar nossa sede de justi�a. Na tecitura desse p�s-morte cotidiano, pobre como um
pedreiro e numeroso como oito, o que sinto � a for�a da vida perante a justi�a a reclamar
seu leito. Tenho oito filhos, doutor, mas cada filho � �nico pr� gente. Seu filho ningu�m
devolver�, senhor. Quem o matou talvez nunca desperte para a pr�pria humanidade, nem
escute a dor da fam�lia que o seu rev�lver estra�alhou. Talvez n�o porque n�o ser�o 3 anos
- nem 6, ou 12 - que lhe abrir�o o cora��o. Talvez n�o porque, de t�o ocupados em livrar
inocentes e castigar culpados, n�o nos sobra tempo para escutar, e menos ainda para
encontrar os homens, restaurar sua humanidade e fazer da justi�a uma resposta que cura.
Mas se algum consolo lhe serve, ao menos o juiz que lhe ouviu hoje lhe agradecer� por vir
chorar � sua sala, e ensinar, com seu quase sussurrado clamor que, sem responsabilidade, a
justi�a perece. (22.05.06).

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