Fazendo as pazes com a diversidade
Enquanto fazendeiros indianos est�o adotando
satyagraha (compromisso com a verdade) contra o
controle global de corpora��es transnacionais, a
Dra. Vandana Shiva examina a viol�ncia das
monoculturas, tanto agr�colas como ideol�gicas, e
argumenta que a diversidade � uma ferramenta
essencial para a mudan�a n�o-violenta -
e que as quest�es ecol�gicas s�o insepar�veis
da "justi�a social, paz e democracia".
Nesses tempos de "limpeza �tnica", em que as monoculturas se espalham pela
sociedade e pela natureza, fazer as pazes com a diversidade logo se tornar� um imperativo
para a sobreviv�ncia.

As monoculturas s�o um componente fundamental da globaliza��o cujas premissas
s�o a homogeneiza��o e a destrui��o da diversidade. O controle global das mat�rias
primas e dos mercados fazem da monocultura algo necess�rio.

Esta guerra contra a diversidade n�o � algo novo. A diversidade vem sofrendo
ataques sempre que se tornou um obst�culo. A viol�ncia e a guerra originam-se na atitude
de tratar a diversidade como uma amea�a, uma pervers�o, uma fonte de desordem. A
globaliza��o transforma a diversidade numa doen�a e numa defici�ncia, porque n�o pode
ser posta sob um controle centralizador.

Monocultura e viol�ncia
A homogeneiza��o e a monocultura introduzem a viol�ncia em v�rios n�veis. As
monoculturas est�o sempre associadas � viol�ncia pol�tica - ao uso de coer��o, controle e
centraliza��o. Sem um controle centralizador e for�a coercitiva, este mundo repleto de um
tesouro de diversidade n�o poderia ser transformado em estruturas homog�neas, e as
monoculturas n�o poderiam ser mantidas. Comunidades e ecossistemas auto-organizados e
descentralizados geram diversidade. A globaliza��o d� origem a monoculturas controladas
coercitivamente.

As monoculturas est�o tamb�m associadas � viol�ncia ecol�gica - uma declara��o
de guerra � diversidade de esp�cies da natureza. Essa viol�ncia n�o s� empurra as
esp�cies para a extin��o, mas tamb�m controla e mant�m as mesmas monoculturas. Elas
s�o vulner�veis e n�o-sustent�veis, e est�o sujeitas ao colapso ecol�gico. A uniformidade
significa que uma perturba��o em uma parte do sistema � traduzida em perturba��o nas
outras partes. Em vez de ser contido, o desequil�brio ecol�gico tende a ser amplificado. Do
ponto de vista ecol�gico a sustentabilidade est� ligada � diversidade, que prov� a auto-
regula��o e multiplicidade de intera��es capazes de sanar desequil�brios ecol�gicos em
qualquer parte do sistema.

A vulnerabilidade das monoculturas
A vulnerabilidade das monoculturas est� bem ilustrada na agricultura. Por exemplo,
a "Revolu��o Verde" substituiu centenas de variedades locais de arroz pelas variedades
uniformes do International Rice Research Institute. O JR-8, lan�ado em 1966, foi atingido
em 1968-69 por uma bact�ria, e atacado pelo v�rus timgro em 1970-71. Depois foi
desenvolvido o JR-36 para resistir �s 8 maiores doen�as, incluindo bact�rias e o v�rus
timgro. Mas, sendo uma monocultura, esta variedade de arroz ficou vulner�vel a dois
novos v�rus: o "ragged scunt" e o "wilred scunt".

As chamadas variedades milagrosas eliminaram a diversidade das culturas
tradicionais, e pela eros�o da diversidade, as novas sementes tornaram-se um mecanismo
para a introdu��o e cultivo de novas pragas. As variedades nativas s�o resistentes a
pragas e doen�as locais. Mesmo que certas doen�as ocorram, algumas das variedades
ser�o suscet�veis, mas outras ter�o resist�ncia e sobreviver�o.

Natureza e sociedade
O que acontece na natureza tamb�m acontece na sociedade. Quando uma
homogeneidade � imposta a sistemas sociais diversificados atrav�s da integra��o global,
uma regi�o ap�s a outra come�a a se desintegrar. A viol�ncia inerente � integra��o global
centralizada, por sua vez, gera viol�ncia entre suas v�timas. As condi��es da vida di�ria
tornam-se cada vez mais controladas por for�as externas e os sistemas locais de governo
decaem; as pessoas agarram-se �s suas identidades diversas como fonte de seguran�a
num per�odo de inseguran�a. Tragicamente, quando a fonte desta inseguran�a � t�o
remota que n�o pode ser identificada, povos distintos que viviam juntos em paz come�am
a olhar uns para os outros com temor. As marcas da diversidade tornam-se rachaduras de
fragmenta��o; a diversidade torna-se ent�o uma justificativa para a viol�ncia e a guerra,
como vimos no L�bano, na �ndia, Sri Lanka, Iugosl�via, Sud�o, Los Angeles, Alemanha,
It�lia e Fran�a. � medida que os sistemas locais de governo se esfacelam sob a press�o da
globaliza��o, as elites locais tentam agarrar-se ao poder manipulando os sentimentos
�tnicos e religiosos que surgem em rea��o.

Num mundo caracterizado pela diversidade, a globaliza��o s� pode ser implantada
destruindo-se o tecido plural da sociedade, bem como sua capacidade de auto-
organiza��o. Gandhi via nessa liberdade de auto-organiza��o pol�tica e cultural a base
para a intera��o entre diferentes sociedades e culturas. "Quero que as culturas de todas
as terras se espalhem o mais livremente poss�vel, mas recuso-me a ser levado por qualquer
uma delas", dizia ele.

Globaliza��o
A globaliza��o n�o � a intera��o trans-cultural de sociedades distintas; � a
imposi��o de uma cultura em particular sobre todas as outras. A globaliza��o tamb�m n�o
� a busca de equil�brio ecol�gico numa escala planet�ria. Ela � a a��o predat�ria de uma
classe, uma ra�a e muitas vezes um g�nero de uma s� esp�cie sobre todos os outros. A
palavra "global" no discurso do dominante � o espa�o pol�tico no qual o dominante local
procura exercer controle global, livrando-se das responsabilidades que adv�m dos
imperativos da sustentabilidade ecol�gica e justi�a social. Nesse sentido, o "global" n�o
representa um interesse humano universal; representa uma cultura e um interesse
particular, local e provinciano, que foi globalizado atrav�s de seu alcance e controle, sua
irresponsabilidade e falta de reciprocidade.

A globaliza��o se deu em tr�s ondas. A primeira onda foi a coloniza��o da Am�rica,
�frica, �sia e Austr�lia pelas pot�ncias europ�ias h� mais de 1500 anos. A segunda imp�s
uma id�ia ocidental de "desenvolvimento" durante a era p�s-colonial das �ltimas cinco
d�cadas. A terceira onda de globaliza��o, que se desencadeou h� cerca de cinco anos, �
conhecida como a era do "livre com�rcio". Para alguns comentaristas, isto implica num fim
� hist�ria; para o Terceiro Mundo � uma repeti��o da hist�ria atrav�s do re-colonialismo.

Globaliza��o e Colonialismo
Quando a Europa come�ou a colonizar as diversas terras e culturas do mundo,
tamb�m colonizou a natureza. A transforma��o do modo como percebemos a natureza
durante a revolu��o industrial e cient�fica ilustra o modo como, dentro da mente europ�ia,
a natureza como um sistema vivo auto-organizador se transformou em uma mera mat�ria
prima para explora��o humana, que precisa ser gerenciada e controlada.

"Recurso" originalmente denotava vida. Sua raiz latina � resurgere ou "ressurgir". Em
outras palavras, recurso significa auto-regenera��o. O uso do termo recurso para a
natureza tamb�m implicava num relacionamento de reciprocidade entre a natureza e os
humanos.

Com a ascens�o do industrialismo e do colonialismo, deu-se uma mudan�a no
significado. "Recursos naturais" passou a significar mat�ria prima para a produ��o de bens
industrializados e com�rcio colonial. A natureza foi transformada em mat�ria morta e
manipul�vel. Sua capacidade de renova��o e crescimento foi negada.

A viol�ncia contra a natureza e a destrui��o de seus delicados inter-
relacionamentos foi uma parte necess�ria da nega��o de sua capacidade de auto-
organiza��o. E esta viol�ncia contra a natureza, por sua vez, foi traduzida em viol�ncia na
sociedade.

Tudo que fugia ao controle ou gerenciamento do homem europeu era visto como
uma amea�a. Isto inclu�a a natureza, as sociedades n�o-ocidentais e as mulheres. Tudo
quanto fosse auto-organizador era considerado selvagem, descontrolado e n�o-civilizado.
Quando a auto-organiza��o � percebida como caos, cria-se o contexto para impor uma
ordem violenta e coercitiva em nome da melhoria e progresso do "outro", cuja ordem
intr�nseca � ent�o fragmentada e destru�da.

O medo ocidental do agreste e da diversidade a ele associada est� intimamente
ligado ao imperativo da domina��o humana, ao controle e dom�nio do mundo natural.
Assim, Robert Boyle, o famoso cientista, que foi tamb�m Governador da New England
Company em 1760, via a ascens�o da filosofia mecanicista como um instrumento de poder
para dominar n�o apenas a natureza, mas tamb�m os habitantes nativos da Am�rica. Ele
declarou explicitamente sua inten��o de livrar os �ndios da Nova Inglaterra de suas id�ias
absurdas sobre o funcionamento da natureza. Boyle atacou sua percep��o da natureza
como "uma esp�cie de Deusa" e argumentou que "a venera��o da qual est�o imbu�dos os
homens pela natureza tem sido um terr�vel impedimento para o imp�rio do homem sobre as
criaturas inferiores de Deus". O conceito do "imp�rio do homem" foi ent�o substitu�do pelo
da "fam�lia da terra", onde os humanos est�o inclu�dos no pluralismo da diversidade natural.

Esta diminui��o conceitual foi fundamental para os projetos de coloniza��o e para o
capitalismo. O conceito de uma fam�lia terrena exclu�a as possibilidades de explora��o e
domina��o; uma nega��o dos direitos da natureza e das sociedades que reverenciam a
natureza foi necess�ria para facilitar a explora��o e os lucros descontrolados.

Globaliza��o II: "Desenvolvimento"
A guerra contra a diversidade n�o terminou com o colonialismo. A rotula��o de
na��es e povos inteiros como "europeus deficientes" teve uma segunda edi��o na ideologia
do "desenvolvimento", que oferecia salva��o atrav�s de generosa assist�ncia e
aconselhamento do Banco Mundial e o Fundo Monet�rio Internacional, bem como de outras
institui��es financeiras e corpora��es multinacionais.

Desenvolvimento � uma palavra bonita que sugere uma evolu��o que vem de
dentro. At� meados do s�culo XX era sin�nimo de evolu��o enquanto auto-organiza��o.
Mas a ideologia do desenvolvimento implicou na globaliza��o das prioridades, padr�es e
preconceitos do Ocidente. Em vez de ser autogerado o desenvolvimento passou a ser
imposto. Em vez de surgir de dentro para fora passou a ter orienta��o externa. Em vez de
contribuir para a manuten��o da diversidade o desenvolvimento criou homogeneidade e
uniformidade.

A "Revolu��o Verde" � um exemplo t�pico do paradigma do desenvolvimento. Ela
destruiu sistemas agr�colas diversificados, adaptados aos diversos ecossistemas do
planeta, globalizando a cultura e a economia de uma agricultura industrial. Exterminou
milhares de culturas e variedades de cultura, substituindo-as por monoculturas de arroz,
trigo e milho em todo o Terceiro Mundo. Substituiu aportes internos por aportes intensivos
de capital e qu�micos, criando d�vidas para os fazendeiros e morte para os ecossistemas.

A "Revolu��o Verde" n�o significou apenas abrir as portas � viol�ncia contra a
natureza. Por criar uma agricultura gerenciada externamente e controlada globalmente,
ela semeou a viol�ncia na sociedade. Mudou a estrutura dos relacionamentos sociais e
pol�ticos - antes baseados em obriga��es m�tuas (embora assim�tricas) dentro do vilarejo
- e agora transformados em relacionamentos de fazendeiros com seus bancos, lojas de
venda de sementes e fertilizantes, compradores de alimento, vendedores de m�quinas
agr�colas e eletricidade. Os fazendeiros, pulverizados e fragmentados, relacionando-se
diretamente com o estado e o mercado, foram levados a uma eros�o das normas e
pr�ticas culturais. Al�m disso, diante da escassez de aportes internos, gerou-se conflito e
competi��o entre as classes sociais e entre regi�es.

A centraliza��o do planejamento e aloca��o que possibilitou a "Revolu��o Verde"
n�o afetou somente a vida dos indiv�duos, mas tamb�m a pr�pria concep��o que t�m do
ser. Com o governo servindo de juiz, decidindo todas as quest�es, qualquer frustra��o
passou a ser uma quest�o pol�tica. Num contexto de comunidades diversificadas aquele
controle centralizado gerou conflitos comunit�rios e regionais. Cada decis�o pol�tica
traduziu-se em termos da pol�tica do "n�s" e "eles" - "n�s" fomos tratados injustamente,
enquanto "eles" ganharam privil�gios n�o merecidos. Uma pluralidade positiva tornou-se
dualidades negativas, competindo umas com as outras, competindo pelos escassos
recursos que determinam o poder pol�tico e econ�mico. A diversidade sofreu uma muta��o
para tornar-se dualidade, uma experi�ncia de exclus�o. A intoler�ncia da diversidade
tornou-se a nova doen�a social, tornando as comunidades vulner�veis ao colapso e �
viol�ncia, � decad�ncia e � destrui��o.
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