Fazendo as pazes com a diversidade
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Globaliza��o III "Livre Com�rcio"
Globaliza��o e homogeneiza��o est�o agora sendo implementados n�o por na��es-
estado, mas por for�as globais que controlam mercados globais. O "livre com�rcio" � a
met�fora dominante para a globaliza��o nos novos tempos. Longe de proteger a liberdade
de cidad�os e das comunidades, as negocia��es e tratados de livre com�rcio se tornaram
a sede principal para o uso de coer��o e for�a. A Era da Guerra Fria acabou, e a era das
guerras de com�rcio come�ou.

Entre os exemplos de viol�ncia no livre com�rcio est� a Lei de Com�rcio dos
Estados Unidos, especialmente nas cl�usulas 301 Super e Special, que permitem aos
Estados Unidos tomar medidas unilaterais contra qualquer pa�s que n�o abra seu mercado
�s corpora��es norte-americanas. A cl�usula Super 301 imp�e a liberdade para os
investimentos, e a cl�usula Special 301 imp�e a liberdade para monopolizar o controle dos
mercados atrav�s da prote��o dos direitos de propriedade intelectual. O livre com�rcio �
na verdade um acordo assim�trico que combina liberaliza��o com protecionismo a favor
dos interesses ocidentais.

Na realidade, o livre com�rcio ampliou vastamente a liberdade e poderes de
corpora��es multinacionais para comerciar e investir na maioria dos pa�ses do mundo, ao
mesmo tempo reduzindo significativamente os poderes dos governos locais, com vistas a
restringir sua atua��o. As corpora��es multinacionais, o verdadeiro poder presente na
rodada do Uruguai do GATT (Acordo Geral sobre Tarifas e Com�rcio), ganharam novos
direitos, e se desoneraram de velhas obriga��es em rela��o aos direitos dos trabalhadores
e do meio ambiente.

O livre com�rcio n�o � livre; ele protege os interesses econ�micos das poderosas
corpora��es multinacionais, que j� controlam 70% do com�rcio mundial, e para quem o
com�rcio internacional � imperativo. A liberdade empresarial multinacional est� baseada
na destrui��o da liberdade dos cidad�os de todos os pa�ses, e no pouco que restava em
termos de independ�ncia ao Terceiro Mundo depois das duas primeiras ondas de
coloniza��o. Em ess�ncia o GATT mutila as institui��es democr�ticas dos pa�ses
individuais - conselhos locais, governos regionais e parlamentos - tornando-os incapazes
de realizar a vontade de seus cidad�os.

Os ajustes estruturais e programas do Fundo Monet�rio Internacional e do Banco
Mundial, que tentaram impor o livre com�rcio na era pr�-GATT, d�o-nos uma indica��o
dos tr�s n�veis de viol�ncia criados pela terceira onda da globaliza��o.

Primeiro, temos a viol�ncia dos pr�prios programas de ajuste estrutural, que
roubam ao povo o alimento, os cuidados com a sa�de e a educa��o.

Quando a pr�pria sobreviv�ncia do povo est� amea�ada, ele protesta para
proteger seus direitos. Esses protestos, por sua vez, enfrentam repress�o dos regimes
comprometidos com as condi��es de ajuste estrutural do Banco Mundial e do FMI. Um
economista peruano estimou que ao longo dos v�rios protestos contra os ajustes
estruturais, cerca de 3.000 pessoas morreram, 7.000 foram feridas e 15.000 foram
presas.

Por fim, a vulnerabilidade pol�tica e econ�mica criada atrav�s da t�tica de roubar
aos povos sua capacidade de auto-organiza��o, autogoverno e auto-sufici�ncia tamb�m
cria condi��es para a engenharia da viol�ncia, na qual interesses sob disfarce organizam
grupos vulner�veis sob pretextos �ticos ou religiosos para que declarem guerra uns aos
outros. Nenhum continente est� livre dessas guerras civis, engendradas a partir das
diferen�as raciais, religiosas ou �tnicas. Com o fim da Guerra Fria vimos a introdu��o da
guerra em n�vel global na sociedade civil. A diversidade transformou-se num problema.

Em toda parte a globaliza��o leva � destrui��o das economias e organiza��es
sociais locais, jogando as pessoas na inseguran�a, medo e inquieta��o civil. A viol�ncia
contra o meio de subsist�ncia das pessoas acaba levando � viol�ncia da guerra.

Diversidade e sobreviv�ncia
S� h� uma maneira de deter esta epidemia de viol�ncia. Devemos usar de
sensibilidade e responsabilidade, onde quer que estejamos, quem quer que sejamos, e
novamente fazer as pazes com a diversidade. Devemos aprender que a diversidade n�o �
uma receita para o conflito ou o caos, ela � nossa �nica chance para um futuro mais
justo e sustent�vel, em termos sociais, pol�ticos, econ�micos e ambientais. � nosso �nico
meio de sobreviv�ncia.


A amea�a da engenharia gen�tica
Tanto a tecnologia como o direito tendem para a monocultura e a uniformidade.
Sua proposta � eliminar as op��es tecnol�gicas variadas bem como as formas
diversificadas com que as pessoas t�m se relacionado com a natureza e desenvolvido
sistemas de direitos e obriga��es. O controle monopolizador do pensamento de
monocultura tornou-se muito poderoso atrav�s do surgimento das ferramentas de
engenharia gen�tica. Como alertou Jack Kloppenburg: "Embora a capacidade de mover
material gen�tico de uma esp�cie para a outra seja um meio de introduzir maior
variedade, � tamb�m um meio para produzir uniformidade entre as esp�cies".

A produ��o de esp�cies transg�nicas foi conseguida atrav�s de cruzamentos que
desrespeitam a fronteira entre esp�cies, que foi a forma que a natureza encontrou para
manter as diferen�as e a diversidade. Embora o impacto ecol�gico do desrespeito a essa
fronteira ainda n�o tenha sido totalmente previsto ou avaliado, algumas especula��es s�o
poss�veis. Por exemplo, produzir plantas resistentes ao herbicida � uma das �reas em que
mais se tem investido dentro da biotecnologia agr�cola. O objetivo � concentrar o
controle do mercado agr�cola nas m�os de umas poucas empresas. Ao mesmo tempo,
entretanto, isto introduz mais press�o pela uniformidade, pois variedades n�o resistentes
ao herbicida n�o podem ser plantadas em terrenos contaminados por seu uso excessivo.
Al�m disso, em regi�es de biodiversidade a introdu��o de lavouras geneticamente
modificadas para tolerar herbicidas poder� criar ervas daninhas super resistentes, quando
os genes resistentes a herbicidas se relacionarem com ervas daninhas da mesma fam�lia.

A quest�o da biodiversidade � uma oportunidade para resgatar a diversidade nos
n�veis �tico, ecol�gico, epistemol�gico e econ�mico.

Os direitos das culturas e de outras esp�cies
A conserva��o da biodiversidade, em seu n�vel mais fundamental, � o
reconhecimento �tico de que outras esp�cies e culturas t�m direitos, e que seu valor n�o
deriva simplesmente de serem economicamente exploradas por alguns humanos
privilegiados. O patenteamento e a apropria��o de formas de vida � uma declara��o �tica
da cren�a em contr�rio.

Portanto, a conserva��o da biodiversidade envolve a conserva��o da diversidade
cultural e da pluralidade de tradi��es de conhecimento. Essa pluralidade, por sua vez, �
ecologicamente necess�ria para a sobreviv�ncia em tempos de r�pida mudan�a e colapso
acelerado.

Navdanya (nove sementes) e harnaja (onze lavouras) s�o exemplos de sistemas
de cultivo altamente produtivos ou policulturas baseadas na diversidade, que produzem
mais do que qualquer monocultura conseguiria. Infelizmente, elas est�o desaparecendo -
n�o por baixa produtividade, mas porque n�o precisam de aportes, pois funcionam
baseadas na simbiose com legumes que oferecem nitrog�nio para os cereais. Al�m disso,
sua produ��o � variada, suprindo todo o conte�do nutricional que uma fam�lia precisa.
Entretanto, essa diversidade vai contra os interesses comerciais, que precisam aumentar
a produ��o de uma �nica esp�cie para maximizar os lucros. As policulturas, por sua
pr�pria natureza, s�o ecologicamente prudentes. Assim, ao resgatar a diversidade da
produ��o se estar� criando uma for�a contr�ria aos sistemas de produ��o globalizados,
centralizados e homog�neos que est�o destruindo meios de subsist�ncia, culturas e
ecossistemas em toda parte.

Pluralizando nossas escolhas, estamos ao mesmo tempo criando ferramentas para
a reconstru��o e a resist�ncia. Na �ndia, um movimento gigantesco - Satyagraha das
Sementes - surgiu nos �ltimos anos como resposta aos tratados de re-coloniza��o
atrav�s do GATT, especialmente em suas cl�usulas de propriedade intelectual. Segundo
Gandhi, nenhum tirano pode escravizar pessoas que consideram imoral obedecer a uma lei
injusta. Como declara no Hind Swaraj; "Enquanto existir a supersti��o de que as pessoas
devem obedecer a leis injustas, existir� a escravid�o". Somente uma resist�ncia passiva
pode remover tal supersti��o.

Satyagraha � a chave para o autogoverno, ou swaraj. A frase mais pronunciada
durante o movimento de liberta��o da �ndia foi "Swaraj hamara jannasidh adhikar bai" (O
Autogoverno � nosso direito de sangue). Para Gandhi, e para os modernos movimentos
sociais da �ndia, o autogoverno n�o implicava em governo por parte de um estado
centralizado, mas sim por comunidades descentralizadas. "Nate na raj" (nosso governo em
nossa vila) � uma das palavras de ordem para os movimentos ambientais na �ndia.

Direito � soberania local
Em mar�o de 1993 houve uma manifesta��o em massa na cidade de Delhi, e uma
carta dos direitos dos fazendeiros foi elaborada. Um dos direitos � o de soberania local.
Os recursos locais t�m que ser gerenciados sob o princ�pio da soberania local, segundo o
qual os recursos locais do vilarejo pertencem ao vilarejo.

O direito do fazendeiro de produzir, comerciar, modificar e vender sementes �
tamb�m uma express�o do swaraj. Os movimentos de fazendeiros na �ndia declararam que
ir�o violar o tratado do GATT, se ele for implementado, j� que viola seu direito de sangue.
Outro princ�pio gandhiano que o movimento Satyagraha da Semente adotou foi o de
swadeshi. Swadeshi � o esp�rito da regenera��o, um m�todo para a reconstru��o criativa.
Segundo a filosofia do swadeshi, as pessoas j� possuem, material e moralmente, tudo que
precisam para livrar-se de estruturas opressivas.

Swadeshi para Gandhi era um conceito positivo baseado na constru��o em cima de
recursos, habilidades, e institui��es j� existentes na comunidade, quando necess�rio,
transformando-os. Recursos, institui��es e estruturas impostos oprimem o povo. Para
Gandhi swadeshi era fundamental na cria��o de paz e liberdade.

Na era do livre com�rcio as comunidades rurais da �ndia est�o redefinindo n�o-
viol�ncia e liberdade atrav�s da reinven��o dos conceitos de swadeshi (esp�rito de
regenera��o), swaraj (autogoverno) e satyagraha (compromisso com a verdade). Eles
est�o dizendo "n�o" a leis injustas como o tratado do GATT, que legaliza o roubo da
heran�a biol�gica e intelectual das comunidades do Terceiro Mundo.

Uma parte central do Satyagraha da Semente � declarar os direitos intelectuais
comuns �s comunidades do Terceiro Mundo. Embora as inova��es das comunidades do
Terceiro Mundo possam diferir no tocante a processos e objetivos destas em rela��o ao
mundo comercial ocidental, elas n�o podem ser exclu�das por serem diferentes. O
conhecimento dos ricos tesouros da diversidade natural tem sido uma d�diva para o
Terceiro Mundo. Mas a Satyagraha da Semente � mais do que simplesmente dizer "n�o".
Ela criou alternativas atrav�s da implanta��o de bancos de sementes, do fortalecimento
do estoque de sementes dos fazendeiros, e da busca de op��es agr�colas sustent�veis
apropriadas para aquelas regi�es.

A semente como s�mbolo
A semente tornou-se a sede e o s�mbolo da liberdade na era da manipula��o e
monop�lio de sua diversidade. Ela faz o papel da roca de fiar de Gandhi nesta era de re-
coloniza��o atrav�s do livre com�rcio. A charka (roca de fiar) tornou-se um importante
s�mbolo n�o por ser grande e poderosa, mas por ser pequena; ela ganhava vida como
s�mbolo de resist�ncia e criatividade no menor dos casebres da mais pobre fam�lia. Na
pequenez repousava sua for�a.

A semente tamb�m � pequena. Ela representa a diversidade e a liberdade de
continuar vivo. E a semente continua sendo a propriedade comum dos pequenos
fazendeiros da �ndia. Na semente convergem diversidade cultural e biol�gica. As quest�es
ecol�gicas convergem com justi�a social, paz e democracia.

Este artigo foi extra�do do livro "Biopiracy: the plunderer of nature and knowledge"
(Biopirataria: saqueadora da natureza e do conhecimento), escrito pela Dra. Vandana Shiva
e publicado pela South End Press, EUA, e pela Green Books Ltd. Inglaterra. Dra. Vandana
Shiva � f�sica, ecologista, ativista, editora e autora de muitos livros. Fundou na �ndia o
movimento Navdanya em prol da conserva��o da biodiversidade e dos direitos dos
agricultores. Dirige a Funda��o de Pesquisas pela Ci�ncia, Tecnologia e Pol�ticas de
Recursos Naturais.

[Tradu��o: T�nia Van Acker - Revis�o T�cnica: Lia Diskin - Associa��o Palas Athena]
Distribu�do com permiss�o de Season for Nonviolence - M. K. Gandhi & Martin Luther King Jr.
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