Declara��o do Parlamento das Religi�es do Mundo
Hans K�ng
Te�logo ecum�nico holand�s e autor de diversas obras, dentre as quais, Projeto de �tica Mundial, Edi��es
Paulina.

A hist�ria de um dos documentos mais
importantes do final do s�culo XX,
contada por um de seus principais criadores.

O Conselho para um Parlamento das Religi�es do Mundo em Chicago delegou-me a fun��o de
desenvolver um esbo�o de uma Declara��o das Religi�es para uma �tica Global. Essa foi para
mim uma tarefa extremamente dif�cil. Em todo caso, depois de ter que lidar com os problemas
semelhantes durante um semestre inteiro (1992), num col�quio interdisciplinar com
participantes de v�rias religi�es e continentes tive condi��es de produzir um esbo�o inicial e
envi�-lo a v�rios colegas e amigos para corre��o.
Este primeiro rascunho recebeu ampla aprova��o daqueles a quem foi enviado. Ao mesmo
tempo, dezenas de sugest�es para corre��es formais, bem como de conte�do, foram dadas.
Levei-as em considera��o o mais cuidadosamente poss�vel, num segundo esbo�o; dessa
maneira, o texto ganhou em precis�o. Desejo estender meus sinceros agradecimentos
�queles que participaram deste importante projeto, seja no col�quio interdisciplinar ou em
colabora��o desde o in�cio, por meio de correspond�ncia.
Gostaria de indicar aqui, de modo breve, os princ�pios que me guiaram nessa tarefa.

1.Em primeiro lugar, esta deveria ser uma declara��o das religi�es, que poderia mais tarde
ser seguida por uma declara��o geral (como, por exemplo, no �mbito da UNESCO).
2.Numa declara��o para uma �tica mundial, o foco n�o poderia incidir sobre o plano das
leis, direitos codificados e par�grafos recorr�veis (como no caso dos direitos humanos,
por exemplo), ou no plano pol�tico, de sugest�o de solu��es concretas (como na crise da
d�vida do Terceiro Mundo), mas apenas no n�vel �tico: o �mbito dos valores agregativos,
padr�es irrevog�veis e atitudes interiores fundamentais. � claro que esses tr�s n�veis
est�o relacionados entre si.
3.Houve sugest�es para tornar a declara��o mais "religiosa". Contudo, novas dificuldades
resultariam da�. Se, por exemplo, fal�ssemos "em nome de Deus", a priori excluir�amos os
Budistas. Al�m do mais, n�o h� consenso sobre a defini��o do que � "religi�o". Em todo
caso, referi-me claramente � dimens�o da transcend�ncia, sem for�ar a anu�ncia dos
n�o religiosos, que esta declara��o deve incluir.
4.Por outro lado, houve sugest�es para tornar a declara��o menos "religiosa". Contudo, se
as religi�es, em ess�ncia, apenas repetissem os princ�pios da Declara��o dos Direitos
Humanos das Na��es Unidas, tal declara��o se tornaria sup�rflua; uma �tica � mais do
que um conjunto de direitos. � claro que nossa Declara��o para uma �tica Global pode
ser um apoio �tico � Declara��o dos Direitos Humanos da ONU. De fato, � totalmente
desej�vel que a UNESCO ou a ONU, assim que poss�vel, tamb�m apresentem uma
Declara��o para uma �tica Global.

5.A declara��o deve ser capaz de produzir consenso. Portanto, devem-se evitar
afirma��es que a priori seriam rejeitadas por uma das grandes religi�es e,
conseq�entemente, quest�es morais controvertidas (como aborto ou eutan�sia) tiveram
de ser exclu�das.
6.Esta deve ser uma declara��o formulada em linguagem amplamente compreens�vel, o que
evitar� argumentos t�cnicos e jarg�es, e pass�vel de tradu��o em diversos idiomas.
Parece-me ser mais compreens�vel come�ar com defini��es negativas e, em seguida,
mudar para afirma��es positivas.
Esta declara��o foi assinada pela maioria dos quase duzentos delegados das religi�es
mundiais que participaram do Parlamento das Religi�es do Mundo, ocorrido no centen�rio do
primeiro Parlamento Mundial das Religi�es, em Chicago, em 1893. O Parlamento das Religi�es
do Mundo de 1993 (com a participa��o de 6.500 pessoas) ocorreu entre 28 de agosto e 4 de
setembro de 1993 em Chicago, e esta declara��o foi solenemente proclamada em 4 de
setembro de 1993.
Considera��es explicativas � O mundo est� experimentando uma crise fundamental: a
crise na economia global, na ecologia global e na pol�tica global. A falta de grandes vis�es, o
emaranhado dos problemas n�o resolvidos, a paralisa��o pol�tica, lideran�as pol�ticas
med�ocres com pouca vis�o interior e exterior e, em geral, muito pouco senso de bem comum
s�o vistos por toda parte. H� muitas respostas antigas para novos desafios.
Centenas de milh�es de seres humanos em nosso planeta sofrem cada vez mais com o
desemprego, pobreza, fome e a destrui��o de suas fam�lias. A esperan�a de uma paz
duradoura entre as na��es afasta-se de n�s. H� tens�es entre os sexos e as gera��es.
Crian�as morrem, matam e s�o mortas. Cada vez mais pa�ses s�o abalados pela corrup��o na
pol�tica e nos neg�cios. � cada vez mais dif�cil viver pacificamente em nossas cidades,
devido aos conflitos sociais, raciais e �ticos, o abuso de drogas, o crime organizado e at� a
anarquia. Mesmo vizinhos freq�entemente vivem com medo uns dos outros. Nosso planeta
continua a ser impiedosamente pilhado. Um colapso dos ecossistemas nos amea�a.
Repetidamente, vemos l�deres e membros de religi�es incitar a agress�o, o fanatismo, o �dio
e a xenofobia � e at� inspirar e legitimar conflitos violentos e sangrentos. A religi�o � muitas
vezes usada apenas para fins de poder pol�tico, incluindo a guerra. Estamos desgostosos.
Condenamos esses males e declaramos que eles n�o s�o inevit�veis. J� existe, nos
ensinamentos religiosos do mundo, uma �tica que pode conter a dor global. � evidente que
essa �tica n�o oferece solu��o direta para todos os imensos problemas mundiais. Mas
proporciona fundamentos morais para uma melhor ordem individual e global � uma vis�o que
pode afastar mulheres e homens do desespero, e a sociedade, do caos.
Somos pessoas comprometidas com os preceitos e pr�ticas das religi�es do mundo.
Confirmamos que j� existe um consenso entre elas, que pode ser a base para uma �tica
global � um consenso fundamental m�nimo a respeito de valores agregativos, padr�es
irrevog�veis e atitudes morais fundamentais.

1.Nenhuma ordem mundial melhorar� sem uma �tica global
N�s, mulheres e homens de v�rias religi�es e regi�es da terra nos dirigimos aqui a todas as
pessoas, religiosas e n�o religiosas, pois compartilhamos as seguintes convic��es:
que todos somos respons�veis por uma ordem mundial melhor;
que a luta pelos direitos humanos, liberdade, justi�a, paz e preserva��o da terra � justa e
necess�ria;
que nossas diferentes religi�es e tradi��es culturais n�o devem impedir nosso envolvimento
comum em oposi��o a todas as formas de desumanidade e o trabalho para uma maior
humaniza��o;
que os princ�pios expressos nesta declara��o podem ser afirmados por todas as pessoas
com convic��es �ticas, religiosamente fundamentadas ou n�o;
que n�s, como mulheres e homens religiosos que baseamos nossas vidas numa realidade
�ltima, e que dela tiramos for�a espiritual e esperan�a por meio da f�, da ora��o ou
medita��o, em palavras ou sil�ncio temos, contudo, uma responsabilidade muito especial
pelo bem-estar de toda a humanidade.
Depois de duas guerras mundiais, do colapso do fascismo, nazismo, comunismo e
colonialismo, e do fim da guerra fria, a humanidade entrou numa nova fase de sua hist�ria.
Ela tem hoje suficientes recursos econ�micos, culturais e espirituais para instaurar uma
ordem mundial melhor. Mas novas tens�es �tnicas, nacionais, sociais e religiosas amea�am a
constru��o pac�fica de um mundo assim. Nossa �poca experimentou um progresso
tecnol�gico nunca antes ocorrido, e, no entanto ainda somos confrontados pelo fato de que
a pobreza, a fome, a mortalidade infantil, o desemprego, a mis�ria e a destrui��o da
natureza, em �mbito mundial, n�o diminu�ram, mas aumentaram. Muitas pessoas est�o
amea�adas pela ru�na econ�mica, desordem social, marginaliza��o pol�tica e pelo colapso
nacional.
Em tal situa��o cr�tica, a humanidade n�o precisa apenas de a��es e programas pol�ticos,
mas tamb�m de uma vis�o de conv�vio pac�fico entre as pessoas, grupos �tnicos e �ticos e
religi�es; precisa de esperan�as, metas, ideais, refer�ncias. Mas estes escaparam das m�os
das pessoas ao redor do mundo. Ser� que as religi�es, contudo, apesar de suas freq�entes
falhas hist�ricas, n�o t�m a responsabilidade de demonstrar que tais esperan�as, ideais e
refer�ncias podem ser cultivados, defendidos e vividos? Isso � especialmente verdadeiro em
rela��o ao Estado moderno: exatamente porque ele garante a liberdade de consci�ncia e
religi�o, e precisa de valores agregativos, convic��es e normas que sejam v�lidos para todas
as pessoas, n�o importando a sua origem social, cor da pele, idioma ou religi�o.
Estamos convencidos da unidade fundamental da fam�lia humana. Portanto, rememoramos a
Declara��o Universal dos Direitos Humanos das Na��es Unidas de 1948. Aquilo que ela
formalmente proclamou em termos de direitos, gostar�amos de confirmar e aprofundar aqui,
na perspectiva de uma �tica: a integral realiza��o da dignidade intr�nseca da pessoa
humana, da liberdade inalien�vel, da igualdade de todas as pessoas, e a necess�ria
solidariedade de toda a humanidade.
Baseados em experi�ncias de vida pessoal e na hist�ria opressiva de nosso planeta
aprendemos:
que uma ordem mundial melhor n�o pode ser criada ou, efetivamente, respeitada apenas
por meio de leis, prescri��es e conven��es;
que a realiza��o da justi�a em nossas sociedades depende do discernimento e da prontid�o
para agir justamente;
que a��es em favor de direitos presumem uma consci�ncia de dever, e que, portanto
devemos nos dirigir tanto �s mentes quanto aos cora��es das mulheres e homens;
que direitos sem moralidade n�o podem durar muito, e que n�o haver� uma ordem mundial
melhor sem uma �tica global.

N�o entendemos �tica global como uma �nica religi�o acima de todas as demais, e
certamente n�o como a domina��o de uma religi�o sobre todas as outras. Por �tica global
entendemos um consenso fundamental sobre valores unificadores, patamares incondicionais
e atitudes pessoais. Sem tal consenso �tico b�sico, qualquer comunidade ser� cedo ou tarde
amea�ada pelo caos ou ditadura.
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