Palestra proferida pelo Dr. David Adams*
a Profissionais de Saúde
na Biblioteca Municipal Mário de Andrade,
em São Paulo,
9 de outubro de 2002
PARA EVITAR A VIOLÊNCIA LOCAL,
TRABALHAR PELA NÃO-VIOLÊNCIA E PAZ GLOBAL
·Há relação entre a violência nacional / internacional e a violência local?
·Há relação de causa e efeito da violência nacional / internacional sobre a
violência local?
·Há relação causal inversa, ou seja, da violência local sobre a violência
nacional / internacional?
·Por que há tão pouca relação causal entre não-violência local e não-
violência internacional?
·O que podemos fazer?


Bem-vindos. Quero agradecer pelo convite para ministrar essa palestra. Perdoem por
não falar a sua língua, que é tão bonita, talvez de uma próxima vez.

Hoje falarei a vocês sobre a violência, que é um tema de vital importância. Mas antes
devo mencionar outros assuntos, que oferecem um pano de fundo para o tema.

Tive a oportunidade de trabalhar na Organização das Nações Unidas como diretor do
Ano Internacional da Cultura de Paz. Junto com muitas outras pessoas, elaboramos o
programa permanente das Nações Unidas e da UNESCO para a Cultura de Paz. Na
verdade, estamos agora na Década para a Cultura de Paz e Não-violência para as
Crianças do Mundo, que se estende de 2001 a 2010. Soube através de Lia Diskin que foi
produzido em parceria com a UNESCO um livro muito bonito, e sei que haverá mais
livros desta série. Haverá um material muito rico e projetos para esta Década aqui em
São Paulo

Hoje, entretanto, falarei a vocês na qualidade de cientista. Vamos formular uma
pergunta muito simples, e verificaremos se há uma resposta científica para ela. A
questão é: Qual é a relação entre a violência na família, na comunidade, nas escolas e a
violência ao nível nacional e internacional? Tenho aqui duas referências tiradas de
estudos científicos sobre esta questão.

O primeiro estudo mostra comparações entre nações. A resposta é muito clara. Nações
que se envolvem em guerras produzem maiores índices de violência em suas
comunidades; índices mais altos de assassinatos, assaltos, e outros tipos de violência
que podem ocorrer na comunidade. Portanto, a primeira constatação científica está
clara. Há um forte relacionamento entre a violência internacional e a violência local.
Para ser mais exato, se examinarmos os períodos antes e durante a guerra, veremos que
nestes anos o índice de homicídios e assaltos cresce, e depois de terminada a guerra os
índices voltam lentamente a cair. O estudo contempla também outros aspectos como,
por exemplo, a pena de morte aplicada a assassinatos e outros crimes. Os dados são
claros, há um relacionamento direto entre a pena de morte e o índice de homicídios.
Quanto mais penas de morte, mais homicídios. E se a pena de morte é abolida, nos anos
que se seguem a incidência de homicídios é menor.

O segundo estudo não compara nações, mas mostra informação etnográfica vinda da
antropologia. A resposta também é muito clara. Sociedades com grande participação em
guerras também têm altos índices de homicídio, assalto e outras formas de violência. À
medida que essa mesma sociedade se torna mais pacífica, esses índices de violência
caem.

Em termos científicos, estabelecemos assim o que chamamos de correlação. Sabemos
que há um relacionamento, mas ainda não chegamos à causa e ao efeito. Precisamos
examinar mais a fundo para entender as causas e efeitos. Podemos examinar mudanças
ao longo do tempo. Já que o índice de homicídios cai depois que a pena de morte é
abolida, dizemos que a causa é a pena de morte. Da mesma forma, quando a sociedade
se pacifica e o índice de violência diminui, podemos dizer que a causa é a guerra, a
preparação para a guerra - e o efeito é o alto índice de homicídios. Usando o método
científico, devemos considerar também outros elementos que se interpõem entre a
guerra e o homicídio. No caso são dois: Um é a socialização para a violência. Se
treinarmos nossos jovens para serem soldados e para matar, usarão esse treinamento
também dentro da família e na comunidade. O outro elemento é a questão do padrão
moral e ético. Se o Estado se envolve em violência, ele reitera o direito moral de
praticar a violência. As pessoas passam a considerar que estão moralmente justificadas
a praticar a violência.

Formularei agora uma outra pergunta. É possível que a violência nas famílias e nas
comunidades (a violência local) seja a causa, e a guerra o efeito? Realmente, ao ler
muitos livros e jornais e assistir à televisão, ficamos com a impressão de que a guerra
internacional é simplesmente o produto de pessoas agressivas. Esta é uma questão
importante. Por isso nos reunimos em 1986 em Sevilha, Espanha, com os maiores
especialistas do mundo todo para discutir a violência. Nós nos colocamos a seguinte
questão: Há algo em nossa biologia, na natureza da nossa condição humana que nos
leva a fazer a guerra? A questão foi examinada do ponto de vista evolutivo, genético,
da fisiologia cerebral (pois a minha especialidade é esta), da sociologia, e juntos,
antropólogos, sociólogos, psicólogos, médicos e especialistas em comportamento animal
chegamos à conclusão de que não
¯ a natureza humana não é naturalmente violenta
nem tão pouco não-violenta.

Farei ainda uma outra pergunta, para a qual não há uma resposta científica. A maioria
de nossos relacionamentos humanos — na escola, na família, nos governos locais —
transcorre sem violência. A maioria dos relacionamentos não é violenta. E nesse ponto é
preciso fazer uma distinção entre conflito, ódio e violência. Não é possível ter famílias,
comunidades e escolas sem conflito. Há sempre divergências de opinião e sobre como
fazer as coisas. Mas esses conflitos não são necessariamente violentos. Igualmente, é
impossível viver a vida inteira sem às vezes ficar com raiva. A raiva é uma reação
natural à injustiça. Observe as crianças brincando, quando uma acha que a outra fez
algo injusto, fica com raiva. Mas é desnecessário dizer que isto não é violência.

Portanto a pergunta agora é: Se nós somos capazes de conviver com conflitos e ficar
com raiva sem praticar a violência dentro da família e das comunidades, por que isto
não seria possível ao nível internacional e nacional? Não tenho uma resposta científica
para isto, mas tenho uma opinião política. Durante 5000 anos o Estado tem promovido a
guerra e se identificado com ela. Na verdade o nascimento do Estado se deveu ao
esforço para conquistar escravos e controlá-los. Mais tarde foi para conseguir colônias,
e tivemos o colonialismo. Hoje demos a isso o nome de neo-colonialismo. Portanto, há
fortes interesses no nível do Estado que levam à guerra. Não só à guerra externa, mas
também à guerra para controlar internamente o país. Visto que vocês conhecem muito
bem o caso do Brasil, usarei o exemplo dos Estados Unidos. Nos últimos 150 anos houve
em média 15 intervenções militares dentro dos Estados Unidos envolvendo 15.000
soldados. O Estado tem sido identificado com a guerra há tantos anos — e hoje há
também interesses econômicos para a guerra. Outra coisa muito importante é que o
dinheiro que advém da indústria do armamento (associada com a guerra) é o mesmo
dinheiro que controla os meios de comunicação de massa. Darei a vocês um exemplo: A
Declaração de Sevilha sobre a Violência, de 1986, foi endossada oficialmente pelas mais
importantes associações científicas dos Estados Unidos – a Associação Americana de
Sociologia, a Associação Americana de Psicologia, a de Antropologia. Então, quando a
Declaração foi adotada, convocamos uma entrevista coletiva com jornalistas. Conforme
descrevi no meu artigo sobre a história da Declaração de Sevilha, uma empresa de
notícias nos disse que não estavam interessados, que não era interessante que a guerra
não fosse geneticamente determinada, mas que quando descobríssemos o gene da
guerra, aí sim deveríamos entrar em contato com eles.

Então, o que fazer? Quando elaboramos o programa de ação pela Cultura de Paz para as
Nações Unidas tratamos de algumas questões bastante importantes. Evidentemente
tratamos da não-violência e da educação, mas também tratamos da participação
democrática e do livre fluxo de informações, pois agora temos uma situação na qual
tanto o processo eleitoral quanto os meios de comunicação tendem a dar o controle
àqueles que lucram com a guerra, e o que precisamos fazer é desenvolver processos
democráticos, meios de comunicação que possibilitem às pessoas falarem o que pensam.
Para fazer isto, devemos acreditar que a maioria das pessoas quer um mundo onde os
conflitos são resolvidos de forma não-violenta. O fundamento está no fato de que a
natureza humana é basicamente não-violenta. A história é violenta, os seres humanos
não. Devemos regenerar a história. Como fazer isto? Creio que esta é a nossa pergunta
mais importante.

Sei que muitos de vocês estão lidando diariamente com questões como drogas,
violência, conflitos familiares, e é difícil para vocês se preocuparem com questões tão
distantes como a História e as Nações Unidas. Mas nós sentimos a mesma coisa ao
trabalhar para a ONU. Ali nós trabalhamos justamente para nações que têm interesse na
guerra, mas lutamos diariamente para encontrar uma forma de estabelecer contato com
os povos destas nações.

Portanto, espero que vocês possam entrar em contato com os livros que a Lia está
produzindo e que fazem a ponte entre o que acontece na ONU e o que acontece na sua
comunidade. Reunindo estes dois níveis poderemos construir um mundo de não-
violência.

Obrigado por sua atenção, agora gostaria de abrir um espaço para discussão.
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