Apesar do significativo avanço que resultou da promulgação, em 2006, da Lei Maria da Penha, a grande aliada na repetição da violência contra a mulher é a invisibilidade sob a qual se acobertam comportamentos opressores, ainda tidos como naturais.
As culturas pautadas em modelos autoritários ou de dominação criaram um repertório de ideias, códigos e estruturas que justificam desigualdades hierárquicas inamovíveis. O poder exerce o controle e se perpetua mediante ameaças diretas ou veladas, convencendo os dominados de que estão sendo protegidos contra perigos maiores. Cabe lembrar que, nos sistemas patriarcais, isso acontece sob o amparo da lei.
No caso do sistema “família”, os papéis estereotipados de “a mãe cuida” e “o pai provê” causam hoje uma série de relações disfuncionais que promovem abusos de parte a parte. As crianças acabam sendo as mais prejudicadas, porque se defrontam com contradições cotidianas entre amor/ódio, ofensa/submissão, humilhação/perdão.
Outro fator que colabora com a violência intrafamiliar é o silêncio, fruto da anestesia que o sentimento de vergonha impõe e da perda da autoestima, da capacidade criativa e do cuidado de si. A pessoa fica imobilizada pelo terror constante de “provocar” a violência do agressor, cuja reação recai previsivelmente sobre a vítima – via de regra a mulher, as crianças ou os idosos.
A democratização das relações intrafamiliares — encobertas historicamente pelos muros da vida privada — permite vislumbrar um horizonte promissor, onde se congreguem as vontades e os talentos em vínculos afetivos permeados pelo respeito e o cuidado mútuos, pois todo ser vivo vem ao mundo na certeza do acolhimento.
Nas últimas décadas, tem sido evidente o esforço coletivo na construção de relações interpessoais mais democráticas e horizontais. Os conhecimentos oferecidos pela Psicologia, Antropologia, Ciências Sociais, o fortalecimento e pelos direitos humanos e a habilidade com que as novas gerações utilizam as tecnologias presentes no cotidiano estão nos tornando muito mais sensíveis às questões que envolvem violência.
Há uma consciência crescente sobre as dramáticas consequências físicas, mentais e sociais de ser vítima de um abusador que desrespeita, desqualifica e oprime aqueles com quem guarda vínculos afetivos familiares. O natural seria que os vínculos familiares promovessem o partilhar, reconhecimento mútuo e aspirações de construir um futuro comum que atenda o potencial singular de cada um de seus integrantes.
Estão em pauta e em desenvolvimento todo um repertório de novas tecnologias de convivência, que exploram o diálogo profundo como ferramenta de transformação das pessoas, criam mecanismos para mediar conflitos de maneira saudável, desenham programas de comunicação não violenta. O objetivo é capacitar cada um de nós a expressar nossas necessidades de maneira assertiva e edificante. Já existe um leque de jogos estruturados em torno da cooperação na convivência solidária, dinâmicas de construção de conhecimento coletivo que validam as contribuições de todos os envolvidos, reconhecendo que nenhum deles, isoladamente, seria capaz de alcançar esse patamar de criatividade…
Essas são algumas das metodologias que vêm sendo aplicadas nas sociedades democráticas, visando minimizar o sofrimento que se inflige, de maneira direta ou indireta, àqueles que são historicamente mais vulneráveis e juridicamente menos amparados.
Lia Diskin,
Palas Athena
filosofia em ação