Comitê da Cultura de Paz e Não Violência

“Eu percebi desde pequeno que usar a violência para promover mudança não fazia sentido”, contou o advogado Luís Fernando Bravos de Barros em entrevista exclusiva ao Portal NAMU. Ele tem dedicado sua vida em estudar com afinco o tema da não violência.

“Praticamente todos os homens da minha família foram militares e isso fez com que o discurso de legitimação da violência sempre estivesse muito presente nas discussões familiares. Uma violência legitimada para que a sociedade pudesse viver organizadamente. Nunca me identifiquei com essa ideia. O que sempre me tocava é que eu via o aspecto humano desses meus parentes próximos”, diz Barros que é mestre em Estudos Avançados em Paz e Transformação de Conflito pela Universidade da Basiléia, na Suíça, e mestrando em Paz, Desenvolvimento, Segurança e Transformação Internacional de Conflito pela Universidade de Innsbruck, na Áustria.

Na conversa com o Portal Namu, o advogado que também atua na área criminal e é membro do Instituto de Defesa do Direito de Defesa (IDDD), fala sobre grandes exemplos históricos que resistiram pacificamente a situações violentas. Ele também critica a Justiça brasileira e afirma que falta criatividade para o país sair da crise política-econômica na qual se encontra atualmente.

Portal NAMU: Como o tema da não violência apareceu na sua vida?
Luís Bravos de Barros: Quando criança assisti ao filme Gandhi e fiquei muito inspirado. Depois, morei um ano nos Estados Unidos e tive maior contato com o exemplo de Martin Luther King e o movimento liderado por ele. Mas, sobretudo, o que mais me inspirou foram os exemplos de pessoas próximas, não com a grandiosidade dos grandes movimentos, mas com comportamentos não violentos no cotidiano.

O que é a não violência?
É um termo muito amplo. Trata-se de uma ética de vida na qual eu reconheço minha responsabilidade de me ver no próximo. Ao fazer isso, sinto-me impedido de agredir ou promover qualquer outro tipo de violência, porque se assim fizesse, praticaria violência contra mim também. É uma ideia sistêmica de convivência.

Como conseguir mudanças sem o uso da violência?
A não violência tem sido usada historicamente de forma muito eficiente como estratégia para promover mudanças e transformações. O interessante é que grandes exemplos históricos fizeram questão de associar o aspecto ético à não violência, isso porque ela pode ser usada como um discurso exclusivamente estratégico, mas a experiência histórica tem demonstrado que se o aspecto ético da ideia de não violência não for respeitado nesses momentos de transformações, a chance desses movimentos coletivos darem errado é maior.

Quais foram esses exemplos históricos que usaram a não violência como estratégia para conquistar mudanças?
O movimento de independência da Índia liderado por Mahatma Gandhi (1869-1948), que também levantou outras temáticas importantes como a questão das castas na sociedade indiana, a violência contra as mulheres e a dominação não só política como econômica da Índia. A luta liderada pelo Martin Luther King nos (1929-1968) contra a segregação racial no Sul dos Estados Unidos. Arrisco dizer que esse foi o movimento não violento mais bem registrado que nós temos com imagens e arquivos de áudio.

Há uma série de outras ações não tão conhecidas, como a independência de alguns países no Leste Europeu no período pós-queda do muro de Berlim; a cisão da Tchecoslováquia; a retirada do ditador Ferdinando Marcos nas Filipinas, em 1986; além do movimento não violento de mulheres contra o ditador Charles Taylor e a guerra civil que assombrava a Libéria. No Brasil, há uma carência de registros bem estruturados sobre movimentos não violentos. Talvez o Diretas Já, em 1984, seja nosso melhor exemplo.

A não violência é associada geralmente à indiferença e ao comodismo. Como você vê essa questão?
Talvez esse seja o aspecto principal de ser abordado em uma discussão sobre não violência. É uma associação que relega à não violência uma ideia de ineficácia, principalmente na cultura em que vivemos, na qual práticas violentas são automaticamente tidas como a única solução. É comum o pensamento: “ou agimos com violência diante de um episódio muito grave ou não fazemos nada”. Contudo, a não violência não se relaciona em nada com a submissão.

Para Gandhi, o oposto da não violência era exatamente a covardia. Para ser não violento, é fundamental ter coragem e sair da chamada “zona de conforto”. A militância não violenta é tudo menos omissa e acomodada. Outro ponto importante de ser lembrado é que algumas pessoas acham que um discurso pacífico só funcionará depois que tudo estiver resolvido. Não é assim. Nosso desafio é buscar mudanças enquanto vivemos nessa realidade violenta.

Como uma pessoa que sofreu violência pode desenvolver respostas não violentas?
Esse é outro grande desafio para os tempos atuais, mas tomando como exemplo esses grandes líderes, eles também foram vítimas de ações violentas. O que motivou Gandhi a querer mudar o mundo foi uma discriminação que ele sofreu em um trem na África do Sul. Ele havia pagado a passagem para a primeira classe, mas naquela época pessoas com a pele mais escura não podiam andar na primeira classe. Então, ele foi jogado para fora do trem. Martin Luther King era negro em um lugar onde havia um regime legal de segregação racial. Dalai Lama testemunhou desde quando era criança o genocídio do povo dele na China. Nenhuma dessas pessoas optou pela luta armada.

Há também uma forma de violência legitimada presente no aparelho de repressão policial e no próprio sistema carcerário. Como isso pode ser prejudicial à sociedade?
O discurso de legitimação da violência presume que exista uma violência boa e outra ruim. Contudo, esquece-se geralmente do potencial destrutivo que ela possui em qualquer forma que seja expressada. O problema é que a violência se perpetua. A partir do momento em que eu sofro violência, vários aspectos precisarão ser tratados. Se eu responder com mais violência, trarei mais complexidade por conta do trauma e do poder destrutivo da violência que precisarão ser tratados.

Nós nos apegamos a um discurso de que é preciso ser violento primeiramente para prevenir a violência, pois ela poderia causar um medo que impediria o outro de ser violento, mas isso nunca acontece. As cadeias estão cada vez mais lotadas. O uso da violência é um círculo vicioso e não virtuoso. O mundo está começando a refletir sobre a improdutividade dessa linha de raciocínio.

Quais seriam as possíveis soluções não violentas para situações que envolvem crimes?
Em primeiro lugar, a violência não é a única resposta. Em um conflito no qual há uma vítima a primeira coisa a se fazer é escutar as necessidades dela. Muitas vezes, essas necessidades não se baseiam em uma vontade de retribuir a violência que ela sofreu. Aí surge outro questionamento: “Se não quero ser violento, o que posso fazer se eu também não quero perdoar?”. O perdão é algo importante e não pode ser resultado de uma imposição. É um processo complexo, leva tempo. Mas também não é o único caminho para uma resposta não violenta. Um dos caminhos que estou procurando me aprofundar mais é o da justiça restaurativa.

Luís Fernando Bravo de Barros

“Esse estilo de vida individualista não honra a criatividade”, diz o advogado Luís Fernando Barros

O problema é que o sistema de justiça criminal ainda é muito simplório. Ele se atém à superfície de um conflito social sem se aprofundar nas necessidades humanas de quem sofreu e de quem cometeu o crime. Além disso, é necessário considerar o cenário do conflito e todas as pessoas envolvidas. Nunca há apenas um agressor e uma vítima, mas sim uma rede comunitária que abraça esse episódio e que não é levada em consideração.

Por que o sistema de justiça criminal está dessa forma?
O que silencia tudo isso é uma noção greco-romana, eurocêntrica e também moralista de justiça. De maneira simples, é dessa forma: “se você me deu sofrimento, tem de receber sofrimento de volta”. Também há uma influência católica da ideia de se submeter a um Deus que impõe sofrimento. Mesmo na concepção moderna e racional de justiça se pressupõe que o racional seja equilibrar a balança. Então, “se alguém proporcionou sofrimento, daremos um pouco de sofrimento a ela para equilibrar o jogo”. Enquanto “equilibramos” o sofrimento, diversos outros aspectos importantes são ignorados.

Como lidar com o atual discurso de ódio e apologia à violência existente no Brasil?​
Temos de olhar para dentro. É complicado falar isso sem cair em um discurso espiritualista ou moralista, mas é imperativo perceber o que estamos nutrindo dentro de nós. Será que o que temos é muito diferente desses discursos violentos? Nós, como sociedade e como indivíduos, temos de pensarde que forma alimentamos esse sistema porque, querendo ou não, nós o alimentamos. Isso diz muito a respeito da coerência da nossa vida.

É importante sim reconhecer com qual discurso você se identifica e tentar contribuir da melhor forma com o que faz sentido você. Mas é nesse ponto que reside a importância da não violência, porque se você está disposto a se dedicar a uma causa nessa linha, está aberto também para dialogar com quem quer seja. Você não está disposto a destruir o humano que está lá, mesmo que essa pessoa deseje ser violenta com você.

A polarização política no Brasil tem dificultado o diálogo?
Esse tema me chama muita atenção, porque nos colocamos como se o outro indivíduo vivesse em um contexto cultural diferente. É um distanciamento ilusório e não produtivo. Muitas vezes, como resultado dessa concepção, as pessoas se recolhem por medo e apego a determinadas identidades, o que resulta em uma expressão desses receios com insultos violentos. Isso impede cada vez mais o diálogo em uma situação de opiniões diferentes.

Já é hora de irmos além dessa polarização entre direita e esquerda, imperialismo capitalista e comunismo. Martin Luther King ilustra bem isso quando afirma que “O capitalismo esquece que o ser humano é coletivo e o comunismo esquece que o ser humano é individual”.

Como podemos encontrar esse equilíbrio?
O que falta é criatividade. Esse estilo de vida individualista não honra a criatividade que só pode ser aproveitada em sua totalidade quando vivemos coletivamente, ou seja, quando interagimos. Ocorre que nós, muitas vezes, temos medo de interagir e sermos afetados por esse contato. Como podemos buscar mudanças se temos medo de trilhar o caminho que vai nos permitir pensar em novas possibilidades?

Qual é o papel da mídia nessa realidade violenta na qual vivemos?
Muitos dos movimentos não violentos não foram transmitidos pela mídia. Nesses termos, vivemos em uma realidade na qual se não formos para rua e lidarmos uns com os outros vamos pensar que vivemos em um caos humano. O que a mídia passa é que nós vivemos em uma realidade perdida e sem esperança. Mas, na verdade, isso é a grande minoria. Esse sensacionalismo ganha tanta força exatamente porque é exceção.

Em vez de transmitir reportagens sobre casos de violência em uma perspectiva mais construtiva questionando o que podemos aprender com eles e tentar compreender os conflitos em sua complexidade, a mídia prefere alimentar o medo e a desesperança. O discurso também é sempre “ou é um canalha ou é um santinho”, o que esconde o espectro de um cenário conflituoso. Por um episódio a vida inteira de uma pessoa é rotulada, ou seja, a complexidade humana é deixada de lado. A responsabilidade da mídia seria primeiramente não dividir opiniões.

Muito tem se falado de que o Brasil está em uma crise política e econômica. Qual seria uma possível saída não violenta para essa situação?
Eu acredito que o termo crise está sendo banalizado. Acho que estamos vivendo um momento delicado, mas, ainda assim, as filosofias orientais sempre honraram muito a ideia de crise, porque elas reconhecem o caos que é o universo. É muito importante percebermos que somos caóticos e organizados ao mesmo tempo. Não sabemos como será o amanhã, mas precisamos fugir dessa ideia de progresso linear, influenciada pela ideia eurocêntrica de que alcançaremos uma sociedade totalmente civilizada algum dia. Os discursos que se apegam a essa ideia linear bloqueiam todo o potencial criativo que poderá nos permitir encontrar outros caminhos.

Considero muito relevante as ideias do sociólogo português Boaventura de Souza Santos que se debruça sobre a importância de ouvirmos a sabedoria de povos que estão no planeta Terra há muito tempo e que viveram em harmonia entre eles e com o meio ambiente. Não vejo harmonia como inexistência de conflito ou ausência de dor, mas essa é uma sabedoria que permite usufruir de maneira responsável tudo o que a natureza e os seres humanos próximos têm a oferecer.


O advogado Luís Fernando Bravo de Barros irá ministrar o curso Poder, conflito e participação democrática: ativismo não violento na Associação Palas Athena entre os dias 7 e 28 de outubro, às quartas-feiras, das 19h30 às 21h30. Para saber mais acesse a página da Palas Athenas.

Foto 1: Flickr: David, Bergin, Emmett and Elliott/ CC BY 2.0

Foto 2: Marina Fontanelli

 

Matéria original disponível em: www.namu.com.br