Comitê da Cultura de Paz e Não Violência

 “Seja a mudança que você quer para o mundo” – Gandhi

Aprendi muito em minha passagem como vereador pela Câmara Municipal de São Paulo nos anos 90. Da compreensão mais clara da função do Poder Legislativo e das distorções das suas relações com o Executivo à constatação das minhas limitações pessoais para a vida partidária e para a luta por subir na pirâmide do poder político.

Outro aprendizado me foi proporcionado pela experiência de relatar e depois presidir Comissões Parlamentares de Inquérito sobre corrupção dentro da Câmara: funcionários técnicos honestos davam encaminhamento burocrático a processos com irregularidades; bons advogados colocavam seus conhecimentos a serviço da impunidade de criminosos, pelo princípio do direito de todos à defesa. Isto tornava essas pessoas cúmplices eficazes da corrupção e eu não via como evitá-lo.

Esse sentimento de impotência muitas vezes nos imobiliza. Como hoje frente à evolução das coisas no Brasil e no mundo. Mas talvez um modo de agir usado contra a guerra há muito tempo – a objeção de consciência – possa abrir pistas de ação.

No final da primeira Guerra Mundial movimentos pacifistas, de não violência, propunham ações coletivas de desobediência civil[1]. Quem as colocou mais em evidência, já depois da segunda Guerra Mundial, foram os jovens norte-americanos que se recusavam a ir para o Vietnam por “objeção de consciência”. A consciência do que era e significava essa guerra os impedia de participar.

Obviamente isto infringia a lei e eles eram presos, processados e condenados. Muitos preferiam fugir para o Canadá, que os acolhia. Mas o número de “objetores” cresceu o suficiente para influir na opinião pública, que levou a guerra do Vietnam a acabar.

A segunda guerra mundial foi diferente da primeira pelo desenvolvimento da tecnologia de destruição, comandado pelo complexo industrial-militar, na expressão usada por Eisenhower quando deixou o governo do seu país. Passou-se da bárbara guerra de trincheiras a barbáries como a do genocídio com bombas atômicas. Um relato do que foi essa loucura, em Hiroshima, pode ser visto em artigo da Revista de Estudos Avançados da USP.[2]

Já a terceira, que dizem que já começou, difere das duas primeiras ao tornar todo o planeta um cruento campo de batalha. Como as guerras anteriores, a atual vitima tanto soldados como crianças e mulheres, assim como adultos sem uniforme militar. Mas a destruição maciça de vidas se faz por bombardeios e enfrentamentos entre exércitos mas também inesperadamente por iniciativa quase autônoma de alguns poucos indivíduos, e mesmo de combatentes isolados ou suicidas, em qualquer lugar do mundo. E até agora ninguém viu muito bem como esse processo poderá ser bloqueado.

Esse quadro não deixa de ser assustador. O Brasil e a América Latina têm sido poupados da onda mortífera que está se espalhando. Mas conseguiremos ficar livres dela, por obra de algum milagroso tratado internacional, como os muitos que pretenderam civilizar as guerras, proibindo por exemplo que sejam atacadas ambulâncias brancas pintadas com uma cruz vermelha, ou obrigando que seja respeitada a vida e a dignidade dos prisioneiros de guerra? Na verdade são contraditórios à lógica da guerra…

Quase só nos resta sonhar com algo impossível: o surgimento – por obra e graça de uma grande elevação do nível da consciência das pessoas sobre a loucura da guerra e sobre os reais interesses que as provocam – de tantos objetores que as guerras se tornassem impossíveis, por falta de soldados… Nesse sonho os pilotos à distância de drones armados para substituir os soldados se recusariam a disparar, os mercenários necessários para “ocupar o terreno” parariam por falta de retaguarda, as próprias armas começariam a faltar, por objeção de consciência dos trabalhadores convocados para fabricá-las. Mas como impedir a ação de combatentes mobilizados por convicções religiosas, como os capazes, hoje, de crueldades filmadas para ampla difusão e estranha propaganda?

Temos portanto que deixar de lado esse sonho. Até porque há algo ainda mais aterrador que permanece no horizonte: que essa terceira guerra mundial leve ao apocalipse nuclear. Para que ele ocorra bastará disparar uma das incontáveis ogivas nucleares estocadas ou carregadas em permanência por aviões e submarinos, que nem sabemos por onde estão transitando, e o horror tomará conta da Terra, pelo desencadeamento instantâneo das ações-reações… Esperemos em todo o caso que nenhum dos que dirigem as estruturas políticas do mundo resolva ir mais longe do que testar bombas atômicas para afirmar seu poder, dando razão ao psiquiatra polonês Lobaczewski, que criou a Ponerologia, como estudo do Mal no Poder –  no governo e na sociedade em geral – quando ele é assumido por psicopatas… [3]

Nesse quadro, parece estar fora de nosso alcance parar as guerras.[4]. O que precisamos mesmo é de um Deus pacificador… Mas não podemos ficar imobilizados esperando o pior. Temos que cuidar das atividades que continuam por nossa conta, enquanto sobrevivermos à violência…  E é nessa perspectiva que a objeção de consciência se apresenta como uma possibilidade de ação.

Na verdade ela é uma variante da greve, como forma de recusar o que nos é imposto. Os operários das fábricas no início da revolução industrial descobriram que, cruzando os braços, as fábricas paravam. Ou seja, eles viram que tinham muito mais poder do que parecia. Sem contar com o trabalho obediente de seus operários os patrões não podiam mais fabricar os produtos com os quais obtinham os lucros que buscavam. Através de greves se conseguia conquistar direitos e melhores condições de trabalho, baixar o nível da exploração, obrigar patrões e governos a respeitar os trabalhadores.

Nos dias de hoje a automação das fabricas, povoadas mais de robôs do que de gente, diminuiu esse poder dos operários. Mas os que fazem os robôs funcionarem tem ainda mais poder que os trabalhadores do começo da revolução industrial. Se um ou dois operadores de computadores cruzarem os braços – ou fecharem as mãos – podem parar toda a fábrica.

Essa descoberta desvenda o poder que temos todos como cidadãos. Somos nós que mantemos, com a nossa infinidade de tipos de trabalho, não somente maquinas mas toda a sociedade funcionando. Por isso mesmo os trabalhadores em geral conseguiram que o direito de greve se ampliasse para todas as áreas de atividade humana.

Mas as greves que conhecemos só obtém resultados quando uma efetiva maioria de trabalhadores decide declará-la. E nem sempre isto é possível, porque os que dominam dispõem de meios para enfraquecer apoios. Um grevista sozinho é despedido com base na lei…

A objeção de consciência é um tipo de greve que pode ser declarada individualmente. Se uma única pessoa se recusar a participar de uma determinada atividade por objeção de consciência – por exemplo porque considera que não é ético roubar dinheiro público, ou envenenar alimentos, ou enganar eleitores ou consumidores – ela cria pelo menos um problema jurídico para quem a emprega. E recusar-se a fazer algo para não se tornar cumplice de coisas que prejudicam a todos é tão inusitado que pode chegar mais facilmente a ser notícia…

Uns poucos que ousassem recusar-se a alguma coisa por essa razão já poderiam causar estragos no poder dos que querem manter tudo como está. Como o exemplo bem sucedido contamina, ele poderá tocar a consciência dos outros e se espalhar, diante do que se considera errado, que não devia acontecer, que não devia ser feito.

É bem evidente que a objeção de consciência não pode ser declarada por pessoas isoladas. Cada decisão desse tipo não pode deixar de ser pessoal, pelas suas consequências para o objetor. Mas ela só é realmente possível se estiver apoiada na solidariedade. Nos diferentes tipos de fragilidade de cada um de nós, na impotência e no medo que podemos sentir, só embarcaríamos nessa – ou começaríamos a embarcar – se nos tornássemos objetores apoiados por outros ou juntamente com outros. E precisaríamos ajuda psicológica, política e jurídica, e mesmo reencontrar emprego. E também apoios financeiros, como nos Fundos de Greve que os operários organizavam quando decidiam cruzar os braços. Mais ainda, teríamos que ampliar, onde já exista, a legislação que crie e assegure o direito à objeção de consciência, como se garantiu o direito de greve.

Nós hoje nos indignamos (“Indignai-vos”, escreveu um respeitado cidadão-ativo francês[5]) frente a situações e ações com as quais não concordamos, que consideramos antiéticas, ruins para nós e para todos, onde a lógica econômica e política prevalece até sobre o mais evidente bom senso.

O que nos impede de dar um passo a mais para tornar eficaz nossa indignação, usando o poder que temos de recusar, resistir, desobedecer, em nossas próprias atividades? Por uma exigência de consciência, divulgando ao máximo o motivo de nossa atitude… No jornalismo, no direito, na medicina, na publicidade e na comunicação, na polícia e na segurança, no uso de nossas poupanças, na administração pública, no partido e na atividade política, etc. etc. e mesmo frente à lei que nos é imposta por representantes que foram eleitos mas “não nos representam”, como disseram os “indignados” espanhóis.

Por objeção de consciência as pessoas podem se negar a colocar sua inteligência e seus conhecimentos a serviço de atividades condenáveis, do ponto de vista do respeito à vida dos seres humanos e à própria natureza. Um estudo publicado nos Estados Unidos em 2010 – “Os mercadores da dúvida” [6] – mostra que o inaceitável acontece: há cientistas pagos para semear dúvidas e com isso garantir a continuidade de bons negócios, como sobre o caráter cancerígeno do tabaco e até há pouco sobre a responsabilidade das atividades humanas no aquecimento global…

Poderíamos enfrentar até o consumismo exacerbado que exige que a máquina de produção mundial funcione a todo vapor, e leva a um enorme desperdício de recursos. Muita gente deixaria de comprar coisas supérfluas, por objeção de consciência, quando tomasse consciência de ter sido transformada em cúmplice do mecanismo de busca insaciável de lucro da economia de mercado.

No Brasil vem ganhando apoio a ideia de que superaremos nosso sentimento de impotência se formos para a rua protestar. De fato as coisas só mudam com pressão de baixo para cima. A repressão e a tortura durante os muitos anos da ditadura atingiram seus objetivos: atemorizaram e emudeceram as pessoas. Mas cada vez mais gente está criando coragem e considera que as coisas mudarão se milhares ou dezenas de milhares vierem para a rua demonstrar seu descontentamento. Manifestações como as de junho de 2013 se repetem em menor proporção mas com muito mais frequência. Surgem muitos novos movimentos, com financiamentos espúrios ou estimulados por organizações, partidos, lideranças. Mas nem os meios de comunicação comprometidos com um ou outro campo conseguem manter por muito tempo essas mobilizações.

De fato elas podem até derrubar ditadores – como na Primavera Árabe. Mas nem sempre têm os resultados esperados. O descontentamento volta, com a incapacidade dos novos governos em resolver os problemas. E estes sempre contam com uma enormidade de recursos e de pessoas a seu serviço, profissionalmente, numa extensa e diversificada gama de ações, e conseguem calar os descontentes. Por seu lado os cidadãos não conseguem se manter permanentemente mobilizados. Cansam, e têm que trabalhar para ganhar a vida. Diminuindo a pressão das ruas, aumenta o sentimento de impotência, abrindo caminho para o desanimo e até a desesperança, que nunca são bons conselheiros.

Buscamos então eficácia política. Mas na nossa cultura, pelo menos aqui no Brasil, consideramos que o caminho para isso é a criação de partidos. Mas eles já nascem com todas as distorções geradas pelo fato de se situarem na lógica da luta pelo poder- é o seu DNA. Não podem existir senão a partir da adesão de pessoas que já fazem parte do mundo da política ou aspiram a nele entrar, em geral fechadas à inovação ou à renovação de lideranças.

É preciso continuar criando organizações. Só organizados conseguimos enfrentar um sistema político e econômico extremamente poderoso. Mas precisamos ir além dos partidos e dos movimentos que levam as pessoas às ruas. Seria o caso de criar um movimento político voltado especificamente para a disseminação do imperativo da objeção de consciência, como um modo pacifico e humilde de mudar o mundo? Diga-se de passagem que tais movimentos já existem, ainda que pequenos, pelo menos na Europa.

Hoje já sabemos como construir organizações horizontais – em rede – que permitiriam a um movimento desse tipo se auto expandir infinitamente, inclusive até o nível mundial, por cima de todas as fronteiras. E contamos com tecnologias de intercomunicação horizontal livre em que se torna possível a ajuda e o estimulo mútuos e a multiplicação de adesões e apoios, assim como a difusão instantânea de notícias sobre vitorias – essenciais para persistir – e derrotas, com as quais aprender e se precaver.

Se o imperativo da objeção de consciência começasse a ser mais amplamente discutido e assumido pelos milhares de pessoas e organizações que já agem pela Terra afora para mudar o mundo, talvez pudéssemos avançar mais depressa. Poderia ser uma pequena revolução cultural, rumo a outros valores, frente à total dominação de nossas sociedades pelo dinheiro, principal instrumento da lógica capitalista individualista e competitiva. Não valeria a pena tentar?

Chico Whitaker (janeiro de 2016, chicowf@uol.com.br)