A paz como cultura – Fontes e recursos de uma pedagogia para a paz é o mais recente livro do Prof. Manuel Dios Diz, presidente do Seminário Galego de Educação para a Paz e vice-presidente do Conselho de Direção da Fundação Cultura de Paz, além de coordenador da Cátedra UNESCO de Cultura de Paz e Direitos Humanos da Universidade de Santiago de Compostela (USC), Espanha.
O lançamento foi realizado na USC, com apresentação do catedrático José Manuel Sabucedo, que reproduzimos a seguir. Seu texto pode servir como fonte para conhecer os meandros em que a publicação foi concebida, bem como os principais conceitos de Cultura de Paz contidos no livro, ainda não publicado em português.
Apresentação do livro La paz como cultura, de Manuel Dios Diz
Por José Manuel Sabucedo, catedrático de psicologia social da Universidade de Santiago de Compostela, Espanha
A apresentação de um livro sempre tem algo de especial. Em alguns casos, porque adquire materialidade pela primeira vez e torna públicas ideias e argumentos que, até este instante, tinham existência limitada ou mais próxima do autor. Em outros, porque o autor expõe reflexões que, até aquele momento, só difundira de maneira parcial e através de outros meios, sem a sistematização e articulação de seu pensamento. E finalmente, o que ocorre de forma bastante ocasional, porque a obra serve para dar visibilidade a um discurso com enorme potencial para incidir no debate público sobre questões centrais na vida social e política.
O livro que agora tenho a honra de apresentar, A paz como cultura – Fontes e recursos de uma pedagogia para a paz, insere-se nos três aspectos que mencione, mais especialmente dos dois últimos.
A presença e a voz de Manuel Dios são reconhecidas e respeitadas em âmbitos geográficos e em diversos foros interessados na Educação para a Paz e a Cultura de Paz. Ele é uma referência neste campo e fixou no compromisso com os valores da Cultura de Paz um sinal de sua identidade pessoal e social. Por isto, fazia falta uma reflexão escrita e pormenorizada sobre alguns aspectos que conformam as bases e as práticas da Cultura de Paz.
Ainda que sempre seja um bom momento para aludir a estas questões, os tempos em que estamos vivendo parecem tornar a tarefa mais urgente. Estamos em uma época que não admite análises simplistas nem reducionismos estéreis, já que fenômenos muito contraditórios e negativos coexistem. Os fundamentalismos, a incerteza, o medo, a polarização social, o partidarismo excludente, a deslegitimação do adversário, o relativismo, o desafeto… formam um amálgama muito complexo. Quiçá seja a isto que Gramsci se refere quando fala de crise: o velho não desaparece, o novo ainda não nasceu, e nesse período se produzem os efeitos mais perversos.
Nestes tempos convulsos há que se olhar para novas formas de enfrentar os velhos problemas que desde sempre acompanharam o devenir da humanidade: a desigualdade, a injustiça, a pobreza, a violência, a discriminação. Por isto, é importante considerar a experiência de pessoas como Manuel Dios, que vêm analisando estes temas há anos, desde a teoria até a práxis.
E, neste caminho vital e intelectual, como reconhece no livro, teve a sorte de contar com magníficos companheiros de jornada. De um lado estão todas aquelas pessoas que criaram, há 25 anos, o Seminário Galego de Educação para a Paz, e todas as que posteriormente passaram a colaborar.
De outra, e de maneira especial, está a figura de Federico Mayor Zaragoza, a quem o autor assinala diretamente como o inspirador de seu trabalho, pessoa-chave para que o conceito de Cultura de Paz ocupe espaço no discurso público atual.
Todos sabemos da amizade e afeto que existe entre Federico Mayor Zaragoza e Manuel Dios, mas o protagonismo outorgado ao primeiro não é, em absoluto, exagerado ou compadrio. As declarações e documentos elaborados pela UNESCO entre 1987-1999, período em que Zaragoza foi diretor-geral deste organismo das Nações Unidas, são a prova mais evidente de sua importantíssima contribuição à causa da Paz. Em uma época pouco voltada a reconhecer o trabalho de outros, carece agradecer que neste livro não se escamoteiem elogios ao Prof. Mayor Zaragoza.
Também é necessário não esquecer que iniciativas e propostas como as da Cultura de Paz não surgem num vácuo social, nem são resultado da atividade de indivíduos isolados. Antes ao contrário, surgem das interações e comunicações interpessoais, de redes sociais que em dado momento são minoritárias, mas pouco a pouco vão conformando um discurso alternativo sobre a realidade. Manuel Dios se refere a este feito na introdução do livro, quando afirma que este trabalho “responde às experiências e aos sonhos, aos acertos e erros de homens e mulheres reais que, na Galícia e a partir da Galícia, sempre com uma vocação universal, vêm refletindo juntos, compartilhando vivências para vislumbrar soluções positivas para os conflitos”.
Mas o autor está consciente de que as teses da Cultura de Paz são minoritárias na sociedade, e os discursos com este rótulo têm sérios problemas para serem amplamente aceitos. De um lado, porque em muitas ocasiões não se consegue torná-las visíveis, e o que não se conhece, simplesmente não existe. De outro, porque são frequentemente distorcidas ou meramente deslegitimizadas pelas posições dominantes.
Esta contenda discursiva pode ser, portanto, muito desigual – e o autor tem clareza disto. De fato, uma parte substancial da introdução visa a responder àqueles que colocam em dúvida a respeitabilidade dos estudos sobre a Cultura de Paz.
Esta é uma das razões fundamentais que justificam este livro: defender a validade de um projeto intelectual e ético para enfrentar os desafios da humanidade. E para esta tarefa, Manuel Dios recorre a três ingredientes fundamentais: argumentos, inteligência e paixão. Este último é muito importante quando há que se enfrentar pré-julgamentos bastante arraigados e interesses e grupos poderosos e distintos. A emoção e a paixão, como demonstram os mais recentes trabalhos em neurociência, não são uma patologia da razão, mas o que acompanha e possibilita a ação. Hannah Arendt faz uma referência muito bonita à paixão, dizendo que esta não é o contrário da razão – o contrário da paixão é a indiferença.
A credibilidade do emissor da mensagem é uma das condições chave para sua aceitação. Por isto, a organização deste primeiro livro parece-me especialmente acertada. Ao invés de incluir uma série de referências ou experiências pessoais, o autor coloca à disposição do público documentos e declarações de organizações e coletivos nacionais e internacionais que contam com prestígio e consistência intelectual. Desta forma, um conceito como o de Cultura de Paz – que é desconhecido por uns e criticado por outros – adquire, através da associação com estas instâncias, uma respeitabilidade difícil de conseguir através de outros meios.
Ou seja, está-se lançando uma mensagem clara: a Cultura de Paz não é um invento de um dia nem o desejo de um iluminado ingênuo, mas sim resultado de um processo de maturação de muitos anos, no qual tomaram parte destacados acadêmicos, profissionais e responsáveis políticos.
O autor organiza o livro em três capítulos. O primeiro aborda as origens e antecedentes essenciais do conceito de Cultura de Paz. Nele são expostos e comentados diferentes documentos elaborados desde aquele 24 de outubro de 1945, quando nasce o Sistema das Nações Unidas, em São Francisco, Estados Unidos. Segundo o autor, este seria o primeiro grande antecedente do conceito de Cultura de Paz. A seguir, enumera outros momentos-chave como a Carta de Fundação das Nações Unidas, a Carta Constituinte da UNESCO, o Programa Mulheres e Cultura de Paz etc.
O capítulo dois analisa uma das contribuições-chave para a compreensão do autêntico alcance do conceito de Cultura de Paz e sua concretização: a Declaração e Programa de Ação sobre uma Cultura de Paz das Nações Unidas.
O terceiro e último dos capítulos está dedicado a analisar o que o autor denomina “frutos da Declaração sobre uma Cultura de Paz”, como o fundamental documento Carta da Terra, e declarações como Objetivos do Milênio, Aliança de Civilizações, a legislação e as estruturas de participação política em matéria de paz na Espanha, e a Cultura de Paz nas universidades e nos movimentos sociais.
O autor vai além da apresentação destes documentos e assinala a lógica subjacente a eles, seus elementos mais distintivos, em quais contextos surgiram, quais consequências têm e como se vinculam a diferentes problemáticas sociais. Isto é, o autor nos leva a uma visita guiada aos diferentes documentos que constituem a origem e os efeitos do conceito de Cultura de Paz. A admiração professada a algumas destas peças não é impedimento para que o autor seja consciente de que são um produto humano e, portanto, situados historicamente – e que, por esta razão, necessitam ser constantemente repensados e atualizados.
Manuel Dios mostra, em diferentes momentos do livro, sua preocupação sobre porque algumas ideias-chave da Cultura de Paz ainda não fazem parte do sentido comum ou das representações sociais da cidadania. São elas:
1. A visão restrita do conceito de Cultura de Paz. Na introdução, afirma que muitas pessoas a associam ao oposto da guerra, ou como algo que seja parte de realidades que não se ligam ao seu cotidiano. Diz, concretamente, que essas pessoas “têm dificuldade para relacionar a paz às suas próprias vidas”.
Este é, sem dúvida, um dos grandes desafios do conceito de Cultura de Paz: passar de sua vinculação exclusiva com a guerra e associá-lo a um conjunto de valores, atitudes e comportamentos que presidem nossa vida, e que estão presentes em cada uma de nossas atividades. O autor menciona uma citação de María Zambrano que reflete perfeitamente esta ideia: “A paz é muito mais que assumir uma postura, é uma autêntica revolução, um modo de viver, um modo de habitar o planeta, um modo de ser pessoa”.
2. Outra das ideias importantes que surgem deste emaranhado teórico-conceitual da Cultura de Paz refere-se a que a paz não pode ser entendida unicamente como ausência de violência direta. Por isto, a expressão peacekeeping foi sendo substituída pouco a pouco por peacemaking. Isto é, a paz é a eliminação de todo tipo de violência – a direta, mas também a estrutural e a cultural.
Isto quer dizer que a violência direta deve ser explicada em alusão às condições de privação objetiva ou relativa na qual as pessoas vivem. Apesar da dificuldade que se possa supor para que os grupos confrontados cheguem a acordos, esta maneira de entender a violência abre, por mais contraditório que pareça, uma porta de esperança. Sempre que se reconhece um conflito, por mais subjetivo ou simbólico que seja, há a possibilidade de abordá-lo e resolvê-lo. Quando, ao contrário, é negada a existência deste conflito se está renunciando à possibilidade de pôr-lhe um fim através do diálogo.
Por esta razão, não se trata apenas de deter uma confrontação, mas de eliminar as causas estruturais que estão em sua origem. Isto supõe afirmar que a violência não é uma maldição divina nem componente genético da espécie, senão a consequência perversa de determinadas práticas intergrupais e sociais.
Desta forma, se está questionando o paradigma biologístico e a naturalização da violência. Este tipo de discurso chegou a estar tão difundido que o próprio Albert Einstein, submerso no pessimismo antropológico, enviou uma carta para Sigmund Freud perguntando se seria possível libertar os seres humanos do ódio e da guerra. A resposta de Freud foi a seguinte: “Quanto devemos esperar até que também os outros se tornem pacifistas? […] Não é possível adivinhar por quais caminhos se chegará a este fim. Por ora, só podemos dizer: tudo o que impulsiona a evolução cultural age contra a guerra”.
Esta posição de Freud, além de avançar no surgimento do paradigma sociocultural da violência que viria à luz décadas mais tarde, parece muito próxima do Programa de Ação sobre uma Cultura de Paz.
A Cultura de Paz, portanto, posiciona-se contra o fatalismo e a resignação. No preâmbulo da Ata Constitutiva da UNESCO, que Manuel Dios qualifica como texto fantástico, aparece destacada uma das frases mais celebradas deste movimento pela Cultura de Paz: “Posto que as guerras nascem na mente dos homens, é na mente dos homens que serão erguidos os baluartes da paz”.
Isto joga por terra qualquer tipo de determinismo maldito e devolve às pessoas o controle sobre suas vidas. Já não temos as desculpas de deuses, religiosos ou biológicos, que movem como querem a nossa vontade. Nós somos protagonistas de nossas vidas. Nós construímos o nosso futuro. Simples assim, importante assim.
3. Finalmente, há outro aspecto pelo qual Manuel Dios mostra sua preocupação. Segundo relata, em certos âmbitos acadêmicos existe um pré-julgamento sobre o caráter não científico, ou ideológico, dos estudos para a paz. Pode ser que tal atitude exista, mas esta posição, ainda que proceda de fontes presumidamente científicas, apenas demonstraria desconhecimento por parte de quem a mantém.
A atividade científica, em seus diversos campos, tem de adotar um claro e ativo compromisso com uma sociedade melhor e mais justa. Esta é uma posição ética que não pode apartar-se com argumentos falaciosos, como os da presumida neutralidade axiológica do trabalho científico. Não só porque o ideal de uma ciência livre de valores seja apenas um mito, como ficou demonstrado há mais de 20 anos, mas também porque ante questões que afetam de maneira significativa o bem-estar das pessoas e dos povos, a equidistância é moralmente condenável. Dante Alighieri manifestou isto em sua época com absoluta clareza, quando concluiu que “O pior lugar nos infernos está reservado àqueles que se mantêm neutros em momentos de crise”.
Desta mesma convicção comungam ilustres cientistas sociais que, em diferentes épocas da História, combateram com o rigor da investigação teorias e ideologias que estavam a serviço do mal: pobreza, desigualdade, injustiça, violência etc. – algumas das quais, como as teorias eugenésicas ou das diferenças raciais, foram avalizadas por uma parte da chamada comunidade científica. À diferença destas pseudoteorias, as obras de destacadas personalidades de diversas áreas científicas avalizam empiricamente muitos dos princípios que sustentam a Cultura de Paz.
Por tudo isto, a obra de Manuel Dios resulta especialmente importante para dar visibilidade e legitimar novas atitudes, valores e comportamentos nos distintos níveis das relações humanas e sociais. Uma obra que terá sua continuação em um segundo volume de caráter mais prático, que também será uma expressão do compromisso vital, profissional e intelectual com este tema.
Para finalizar, quero dar meus parabéns ao autor por esse magnífico livro que, sem dúvida, servirá para avançar na presença e consolidação da Cultura de Paz.